sexta-feira, 18 de março de 2011

Carlos Pereira - A Retreta E O Sorvete De Ameixa




um conto - uma crônica

Cada cidade tem hábitos e tradições que, acumulados ao longo do tempo, terminam por formar a memória do lugar. A nossa bela capital cultivou, através de décadas já perdidas no tempo, alguns padrões sociais, culturais e até comportamentais que marcaram a sua vida, em épocas outras, fazendo-a merecedora de afetuosas mensagens de amor, escritas aqui e alhures, por poetas embevecidos com a "cidade-jardim".

O "footing" em volta da Lagoa nas tardes de domingo era imperdível: os rapazes que trajavam roupa de linho branco S-120, se postavam junto aos bancos onde aguardavam, ansiosos, a volta da moça loura de olhos azuis, vestido de tafetá e saia godê, em busca da retribuição ao gesto de atenção antes repetido sem sucesso. E o vai-e-vem incessante só terminava com a chegada da noite, quando os compromissos com a retreta da Praça João Pessoa se sobrepunham a qualquer outro.
Na hora da retreta, a Praça se enchia de gente e a música alegrava as minhas noites de domingo. Os dobrados do maestro Joaquim Pereira, tocados pela banda do 15º.R.I., de vez em quando ainda soam aos meus ouvidos, e me fazem lembrar os tempos de adolescente, animado pelo namorinho inocente e romântico daquele tempo - a coragem vinha na dose dupla de vodca com laranjada, servida por Barbosa, o preferido garçom da Casa dos Frios.

O terminar da retreta era uma apoteose, digna do final da noite do domi
ngo: os últimos acordes do "Meu sublime torrão" ou do Hino Nacional em ocasiões mais solenes ou datas mais importantes. Todos se encaminhavam para o Pavilhão do Chá, onde se deixavam ficar junto às jovens da sociedade num bate-papo descontraído , quase sempre em redor de u'a mesa em que a pedida predileta era o inesquecível sorvete de ameixa - o melhor da cidade , na opinião dos frequentadores.

Era a cidade dos anos cinquenta, em que praticamente não circulavam automóveis, que, hoje em dia, tomam o lugar dos pedestres até em cima das calçadas. Nos trilhos corriam os bondes, de saudosa memória, que nos levavam tanto para Tambaú como para Cruz das Armas, passando invariavelmente pelo Ponto de Cem Réis e que nos permitiam utilizar um novo tipo de moeda, aceita por todos sem constrangimento - o velho "passe de bonde", unidade dimensional largamente aplicada na década.

Pouco resta daquela cidade da minha infância. Como muitos já disseram, aos poucos se foi destruindo a memória deste arruado, não tão de repente transformada em urbe cosmopolita, com as vantagens e defeitos que o mundo moderno lhe impõe. E ela foi tão vilipendiada ao longo do tempo que pouco sobrou para formar a sua história: o que era, foi e sempre será bonito (ainda que velho seja), vai dando lugar a modernismo discutíveis, coisa mal arrranjadas e criações de duvidoso gosto.

Recordo, magoado, o tempo em que se consumou mais um atentado à memória de João Pessoa, (a cidade), nos idos de 70: contra a opinião dos defensores do patrimônio histórico (mais ainda sem a vigilância de curadores), o prefeito da ocasião retirou da rua Duque de Caxias os postes estilo "belle époque" - verdadeiras obras de arte fundidas por mãos de artistas - cujas lâmpadas iluminavam as frentes dos casarões assobradados, imponentes e belos.

O sacrifício daqueles postes que sustentavam os lampiões de gás, responsáveis pela primeira luz noturna da rua Direita, foi mais um golpe mortal na memória da cidade, de cuja história, recordo - com saudade - a retreta da Praça e o sorvete de ameixa do Pavilhão do Chá.

Ah! Os bons tempos do velho Pavilhão do Chá, sobre cuja beleza , aliás, Luiz Augusto Crispim, em recente crônica construiu u'a maravilhosa aquarela...

Carlos Pereira
Jornalista, escritor, engenheiro e
professor universitário

Publicada no jornal O Norte.

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