segunda-feira, 21 de março de 2011

Carlos Pereira - Friozinho Gostoso




um conto - uma crônica

As chuvas começavam em maio, às vezes as primeiras chegavam no final de abril, mas pra valer mesmo elas se derramavam sobre as ruas sem calçamento do bairro, a partir dos meados de junho, quando aconteciam os festejos juninos. Aí, sim, era chuva pra ninguém botar defeito e elas vinham acompanhadas de um vento forte e frio, que fazia tiritar quem não dispunha de um bom agasalho. E isso era aqui, não pensem que era em Campina Grande.

Lembro bem que, numa noite de junho, muito bem arrumado - de calça nova, camisa listrada e sapato marrom - para ver a festa de São joão da avenida Conceição, saindo de casa na rua da Concórdia, tive de parar no percurso e procurar abrigo embaixo da única marquise que existia no caminho, exatamente na mercearia da esquina da Vera Cruz com a Capitão José Pessoa- tudo isso em Jaguaribe, é claro.

Foi um momento difícil de esquecer porque , naquela noite de chuva forte, outras pessoas fizeram o mesmo e o espaço sob a marquise ficou congestionado.

Mas deixando de lado as chuvas que se prolongavam até agosto, o bom mesmo daquela época era sentir o friozinho gostoso que todas as noites deixava a cidade mais caseira: até as cadeiras nas calçadas eram recolhidas mais cedo e os quase 20 graus de temperatura obrigavam as mulheres (principalmente) ao uso de casacos de lã ou providenciais xales.

Eu, que nem sonhava e nem sabia o que era um bom vinho, um "fondue" de queijo ou um cobertor de orelha, sabia mesmo era apreciar o barulho musical da chuva batendo no telhado (sem forro e sem goteiras), a água caindo aos borbotões pela biqueira da casa, as poças que se formavam na Vasco da Gama e o perigo que representava a encharcada bola-de-meia, de cujo impacto os craques nem sempre conseguiam se defender, atingidos às vezes na chamada região dos países baixos.

Sair pela rua chutando as poças, tomar banho de chuva, correr contra o vento com os pingos de chuva a bater no rosto - eram coisas que faziam a minha felicidade, principalmente depois que fiquei curado daquela asma que por alguns anos me atormentou e cujo remédio milagroso nunca soube qual foi...

E, como se diz hoje - curtir aquele friozinho gostoso que fazia de noite, era delicioso e se igualava ao prazer de ficar mais tempo na cama (ou na rede), pois as férias escolares tinham data certa para acontecer e por isso mesmo, depois do São João, as aulas só voltariam no dia 6 de agosto, após o fim da Festa das Neves.

E tenho quase certeza de que mesmo os mais pobres (e eu era um deles) não corriam o risco de morrer de frio, primeiro porque tinham um teto para se abrigar - à época não existiam os atuais moradores de rua - e, em segundo lugar, porque aquele pijama usado de flanela, guardado de um ano (ou de um irmão) para outro, vinha na hora certa, às vezes coronha nas pernas e curto nos braços, saía do armário ainda com cheiro de naftalina, mas cumpria fielmente o seu papel.

Isso tudo, sem falar na indefectível colcha de meia-lã, de cor marrom com listras pretas amarelas que as Lojas Paulistas e o Armazém Nova Aurora expunham nas suas calçadas e o povo a comprava a pouco mais de 2 mil réis e que, por ser tão curta, fazia jus ao famoso ditado:"é cobertor de pobre, quando cobre a cabeça, descobre os pés..."
Carlos Pereira
Jornalista, escritor, engenheiro e
professor universitário
Publicada no jornal O Norte.

(*) A sugestão do tema, objeto da crônica, veio do Dr. Francisco de Assis dos Anjos, cardiologista e amigo de longas datas, que esta semana outorgou mais alguns créditos ao meu coração sexagenário. Obrigado, doutor.
Jornalista

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