um conto -uma crônica
Os acontecimentos, sejam bons ou ruins, marcam profundamente os seus protagonistas. Se foram bons, deixam reminiscências indeléveis na vida dos atores das cenas; se foram ruins, deixam marcas vergastadas de dor, de sofrimento. Os fatos impregnados ficam na vida das pessoas, conforme a verticalidade de suas dimensões. Uma catástrofe maior atinge, física e espiritualmente, as pessoas que dela participam. As cenas, em certos casos, voltam visíveis como se estivessem sendo processadas naquele momento.
A guerra é um acontecimento devastador. Destrói cidades, países e continentes. Destrói a história, quando deixa os seus monumentos em escombros; destrói os que a escrevem, quando os mutila, quando os leva aos ares qual fogo-fátuo. A guerra arruína os grandes e os pequenos. Os que sobrevivem carregam no subconsciente fantasmas que, vez por outra, afloram no consciente com toda a pujança de uma realidade inafastável.
O Sr. Pedrito, com o seu andar arrastado, era um homem preocupado. O futuro dos cinco filhos povoava-lhe a mente, durante as vinte e quatro horas do dia. Ex-combatente, com fantasmagoria guardada na memória, prometera a si mesmo, se voltasse com vida da Itália, cuidar muito bem dos seus descendentes e da mulher Margarita. Criou-os, sem faltar-lhes o essencial. Todos estudaram, menos o Júlio que ficara, apenas, com os rudimentos das letras. É que os pais descobriram ser ele diferente dos outros: tinha um retardo mental. Por isso, uma atenção especial passaram a dispensar-lhe.
O ex-combatente, para confirmar a eterna preocupação que o assaltava, um dia, combinou com a mulher. - Margarita, que acha de fazermos um seguro que beneficie os nossos filhos, após a nossa morte?
- E esse tal de seguro é bom? Perguntou a mulher. - É sim, respondeu Sr. Pedrito. Pagamos uma quantia por mês. Por morte minha, você e os meninos receberão um percentual, como se fosse uma loteria, e, por morte sua, eles terão o mesmo benefício e eu, em seu lugar.
- Bem, se você diz que o tal seguro é bom, é porque é mesmo. - Então você concorda com a idéia?Insistiu. - Concordo com todas as letras maiúsculas, afirmou a mulher.
O seguro foi realizado e, a partir daí, o Sr.Pedrito passou a dormir um sono mais tranquilo. Júlio não ficaria desamparado, teria o seu dinheirinho para garantir a sua sobrevivência.
Os quatro irmãos de Júlio, ao tomarem conhecimento da decisão dos pais, inflaram de júbilo. Júlio, que não entendia das coisas, ficou contente sem saber por quê. Por morte dos pais, receberia dinheiro? Não poderia recebê-lo com os pais vivos? Esta pergunta fizera aos manos.
- Não Júlio, só com papai e mamãe mortos, disse-lhe Alfredo, o mais velho. É claro que também pensamos como você. Contudo, o seguro foi uma decisão deles.
- E esse tal de seguro é seguro também para eles? Perguntou Júlio.
- Só se um deles morrer, respondeu Alfredo.
- Então esse seguro não presta, Alfredo. Prá que o pai e a mãe querem ficar seguros depois de mortos? - Ah! Júlio você não entende mesmo o que eu quero dizer, retrucou Alfredo.
Júlio achava que entendia. Tristonho ficou quando recebeu a sua parte do seguro, três anos depois, quando o pai morreu.Deu o dinheiro à mãe que o pôs no banco, numa caderneta de poupança. Dona Margarita ficara com a pensão do Sr Pedrito, mais o seguro. Muitas vezes, sentava-se na cadeira de balanço, no terraço de sua casa. Com o olhar pregado nas estrelas, recordava a proposta que o marido lhe fizera sobre o seguro. Garantira-lhe ser coisa boa. Ela acreditava tanto nele, que, na ocasião, acatara a sua sugestão. Hoje, via que seguro não era coisa boa, pois, se fosse, a cadeira ao seu lado estaria, também, balançando como a sua.
Dona Margarita, bem casada, unida demais com o marido, sentia-se perdida, sozinha. A única razão de viver centrava-se nos filhos, principalmente, o Júlio, meio leso, desapegado das coisas da vida. Doera-lhe, no luto, ver os outros filhos traçarem planos para empregar o dinheiro recebido do seguro. Pedia a Deus perdão por achá-los mercenários. Não só por achá-los mercenários, mas por notar, claramente, como tratavam o irmão caçula deficiente.
Alfredo, com a morte do pai, sentia-se o chefe da casa. Controlava tudo, até o dinheiro. Recebia a pensão da mãe, retirava a renda do seguro, cobria todas as despesas necessárias.As supérfluas eram para ele e os três irmãos. Para Júlio, apenas o essencial, sendo-lhe as roupas escolhidas nos tabuleiros de preços irrisórios. A mãe sofria calada em face do tratamento diferenciado imposto ao seu filho doente.
Dona Margarita não demorou a juntar-se ao Sr. Pedrito. A solidão e os filhos consumiram-na aos poucos. Para eles, deixou, como o marido, o mesmo seguro. Por ela choraram no dia do enterro, nas missas de sétimo e trigésimo dia. A partir desses dias, voltaram à rotina e aos planos de aplicação do seguro. Lamentavam-se pela pensão que se findara com a mãe.
Júlio sem pai e sem mãe, sofria com a indiferença e pouco caso que os irmãos faziam dele. Comia bem, como todos da casa, mas trajava-se como um pária. Impaciente, os manos fugiam o quanto podiam de uma conversa mais demorada com o irmão caçula. Consideravam-no um entulho, um peso morto.
A vizinhança censurava os filhos de dona Margarita e procurava, na medida do possível, ser, para Júlio, a família que perdera.
Rosita, moça charmosa e compreensiva, morava em frente à casa do Sr. Pedrito. Incentivada pela religiosidade da mãe, fizera-se amiga de Júlio. Ensinara-lhe a jogar dominó, ludo e a fazer palavras cruzadas; fizera-o voltar à escola apropriada à sua natureza. Dava-lhe amizade e o apoio que os irmãos negavam.
Júlio percebera que, de uns tempos para cá, os irmãos traziam-lhe presentes finos, pacotes de bolachas, suas preferidas. Tornaram-se solícitos demais e conversavam horas e horas com ele, sem reclamar. Desvendara o grande mistério: os irmãos descobriram que a pensão da mãe, que fora do pai, poderia ficar para o caçula, por causa de sua deficiência. Conseguiram a boa pensão. Com ela e o atrasado recebido, reformaram a casa, compraram móveis novos e fizeram o plano do detentor da pensão.
Júlio, numa guinada de cem graus, decidiu que ele mesmo receberia o seu dinheiro e dar-lhe-ia uma diretriz, a sua diretriz. Comunicou aos irmãos que iria casar com Rosita. Por isso, a partir daquele momento, controlaria as despess da casa. Os irmãos, atônitos, não acreditaram no que ouviam. Enquanto tentavam dissuadir Júlio do casamento, este preparava casa e enxoval e até já marcara a data das núpcias. Com um riso maroto, Júlio divertia-se com o desespero dos irmãos. A necessidade deu-lhe a luz que faltava para tomar as rédeas do seu destino, graças à bendita pensão e às mãos miraculosas de uma santa mulher que Deus pôs em seu caminho, atendendo, quem sabe, às súplicas dos pais que estejam onde estiverem sempre velam pelos filhos.
Onélia Setúbal Rocha de Queiroga.
Escritora e Professora de Ciências Jurídicas
da Faculdade de Direito da UFPB.
Colunista do Caderno 2, página Cultura,
do jornal “ Correio da Paraíba”.
Histórias Orbícolas.
Páginas 36, 37, 38, 39 e 40.
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