terça-feira, 12 de abril de 2011

Carlos Pereira - A fogueira E As Lanternas


um conto - uma crônica

A noite vai chegando de mansinho e a chuva fina, fria e enjoada ameaça o acendimento da fogueira. Choveu o dia todo, a gente reclama, mas meu pai - do alto de sua sabedoria - diz que é assim mesmo, agora é o tempo de chover e a água que cai do céu é benfazeja: molha a terra, esfria o tempo e ainda deixa um resto pro verão.

Na cozinha, minha mãe está terminando de fazer o bolo de milho e o pé-de-moleque. A avó Mãe Venância - com ajuda de minhas irmãs - enche as últimas palhas das pamonhas que irão para o grande caldeirão já fervendo no fogo. A canjica já está pronta mas ninguém tem o direito de comer antes da hora, pois "canjica quente é veneno" - vaticina minha mãe.

O trabalho de fazer a fogueira este ano foi bem dividido. Uns se encarregaram de cortar a lenha de um galho da mangueira mais velha, outros foram responsáveis pela arrumação da fogueira propriamente dita. O meu pai, às seis em ponto, de chapéu na cabeça (por causa do sereno), um abano numa mão e um vidro de querosene Jacaré na outra, dá início ao ritual de acender a fogueira. Mas a lenha não secou como devia, a chuva molhou demais a madeira e o vento está atrapalhando; depois de alguns resmungos e muitos pigarros, agora já com a ajuda de um vizinho mais versado na matéria, finalmente o fogo começa a pegar, para satisfação de todos. Está na hora de entrar, tomar banho, trocar de roupa e irmos todos para a calçada, onde as cadeiras já estão espalhadas esperando que comece, de fato, mais uma festa de São João.

Lá no quintal, alguém enfia uma faca na bananeira e eu penso que essa é uma brincadeira sem graça, pois aquele leite que sai na faca nunca diz nada. Diferente dos pingos de vela que se lançam na bacia cheia d'água, eu mesmo vi, tinha um P grande bem formado e disseram que era um Paulo (ou Pedro) que iria aparecer na vida da circunstante.

Tomado banho de cuia (água fria de doer, saída de um tonel no banheiro), roupinha limpa composta de uma calça de mescla azul e uma camisa de tricoline xadrez, produzidos na máquina Singer da minha mãe, me posto diante da fogueira, agora já ardendo num fogaréu penso como é bom viver mais uma noite de São João. Meu pai me dá duas caixas de traque de chumbo e dois pacotes de chuveirinho e minha mãe me entrega duas espigas de milho bem novinhas, colhidas no quintal de casa, prontas para assar na quentura da fogueira.

No afã de desviar a minha vista da fumaça da fogueira, da calçada dirijo o meu olhar para a fachada daquela modesta casa e fixo, em definitivo, a cena que vai me acompanhar por toda a vida: as duas janelas e a única porta daquela modesta casa, iluminadas por lindas lanternas de papel crepom, uma em forma de globo abrindo em dois hemisférios, outra como um cilindro abrindo e fechando estilo sanfona. Uma verde e amarelo, bem patriótica, a outra azul e vermelho - tão simples e tão belas.

As lanternas vão ficar acesas até o final da noite. Quando a fogueira estiver acabando e todos, cansados de brincar e de comer, forem dormir, o meu pai - como faz todos os anos - vai apagar as velas das lanternas, fechar as portas e se recolher ao seu quarto, não sem antes de se ajoelhar diante do oratório e rezar mais uma Ave-Maria.

Nessa altura já vou estar no primeiro sono, a sonhar com os anjos, esperando o dia amanhecer para recolher nos restos das fogueiras velhas moedas chamuscadas, jogadas no fogo por penitentes pagadores de promessas.

Hoje, nestes tempos de São João, costumo sonhar com aquelas lanternas coloridas. E elas que foram e serão sempre as inesquecíveis lanternas do meu pai, permanecem acesas mais bonitas do que nunca.
Carlos Pereira
Jornalista, escritor, engenheiro e
professor universitário

Publicada no jornal A União.

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