17 anos depois , um carro de luxo parou em sua porta...
Era a madrugada mais gelada que já se lembravam no bairro Tijucana. A garoa fina parecia querer
invadir tudo — transformava as calçadas em espelhos úmidos que refletiam o brilho trêmulo dos
postes amarelados.
Ali, na praça defronte a estação de ônibus, dois vultos miúdos buscavam abrigo sob a marquise de
um botequim esquecido do tempo.
Mateus tinha apenas nove anos, e envolvia com força sua irmãzinha Clara, de seis, contra o frio que
cortava como navalha.
Tremiam os dois — não só pela noite traiçoeira, mas pela fome que fazia companhia havia dias.
Pela vidraça enevoada do botequim, viam sombras se moverem, ouviam o tilintar de utensílios,
sentiam o cheiro de pão, café forte e ovos fritos escapando pelas frestas da porta.
Era uma tortura sutil — sentir cheiros, saber que aquilo existia, e saber que não podiam alcançar.
“Tô morrendo de fome”, sussurrou Clara, encostando o rosto molhado no ombro do irmão. “Eu sei,
Clara. Amanhã vai dar certo, eu prometo.”
Nem bem disse isso, a porta do botequim se abriu com um som de sininho frouxo.
Uma mulher de rosto cansado, cabelos presos num coque simples, avental já marcado pelo tempo,
fitou-os com olhos gentis. “Vocês estão com frio, né?”, disse ela, secando as mãos no lenço.
Chamava-se Helena Silva, e trabalhava ali havia anos — conhecia nomes tristes e rostos marcados
pela vida. “Entrem. Venham esquentar aqui dentro.”
Mateus hesitou: estivera habituado ao desprezo, a portas se fechando. Mas havia algo na voz de
Helena — uma ternura alta, convincente — e ele estendeu a mão para Clara.
No botequim modesto, com mesas de fórmica e cadeiras desalinhadas,
Helena os acomodou perto do balcão.
Trazia primeiro duas xícaras de chocolate quente — aquele de leite mesmo — e os olhos das
crianças brilhavam como quem encontra um tesouro inesperado.
Enquanto aquecia dentro dela a esperança, ela preparava dois pratos fartos: arroz, feijão, ovo
estrelado e um pouco de linguiça.
“Como vocês se chamam?”, perguntou ela, olhando sem acusar. “Eu sou Mateus, e ela é Clara”,
respondeu ele, desconfiado, mas o cheiro já falava mais alto.
Helena não insistiu em perguntas. Intuiu que havia dor ali. Fora ela mesma órfã muito jovem:
aprendeu cedo que a vida era paga em sacrifício e solidariedade entre os esquecidos. Trabalhara em
vários empregos para sobreviver, para amparar quem restava. Sabia que, muitas vezes, o pouco que
damos pode ser tudo para quem está nu na alma.
Deixou que comessem em silêncio, repondo o que acabava, enchendo xícaras vazias, entregando
fatias de pão extra. Quando terminaram, Mateus quis pagar — mas Helena balançou a cabeça e
envolveu alguns pães em papel pardo. “Voltem amanhã, se quiserem.” E eles voltaram.
Durante quase um mês, os irmãos Marques apareceram todas as noites no botequim. Ela os recebia
sempre igual: sem cobranças, sem juízo. Aos poucos, Helena soube que perderam os pais
recentemente, e que pulavam de abrigo em abrigo para não serem separados. No pouco espaço do
seu coração, começou a separar cobertores, roupas gastas, lenços que não usava mais — tudo para
ajudá-los a suportar aquela estação cruel.
Mateus fazia pequenos ofícios: carregava caixas, limpava vidro de carros nos sinais, juntava latas.
Clara ficava próxima, desenhando no chão com gravetos e papeizinhos. Ela falava com doce
gratidão: “Obrigada, tia Helena.” Helena via no olhar dele o peso de um adulto, mas também uma chama, uma força muda que insistia em existir.
E então, numa noite qualquer, não apareceram. Dias passaram. Perguntou a moradores, buscou nos
cantos que antes os abrigaram. Nada. Era como se tivessem sumido na vastidão da cidade grande.
Os anos se arrastaram para Helena. Continuou servindo cafés, marmitas, cuidando da casa pequena.
Cabelos ganharam fios prateados, mãos mais ásperas, mas o peito guardava memória viva. Em dias
frios, pensava nos irmãos Marques, perguntava-se se estariam bem.
Foi numa quinta-feira nublada, de nebulosidade densa, quando viu um carro preto parar defronte ao
botequim. Um modelo elegante demais para aquelas ruas. Desceram dois jovens bem vestidos: um
rapaz alto, de terno fino; uma moça com jaleco branco, ar de médica. Entraram. Helena olhou, parou
de limpar mesas.
Eles se aproximaram. “A senhora se lembra de nós?”, disse a moça, com voz falha. Helena franziu a
testa e, então, ao ver os olhos, quase caiu. “Mateus? Clara?” disse ela, com a voz embargada. Ela os
abraçou. Os dois haviam voltado.
Contaram que, ao desaparecerem, foram localizados por assistentes sociais e levados a um abrigo
distante. Conseguiram, mesmo na adversidade, permanecer juntos. Nos primeiros anos foram rasos
de adaptação, saudade, medo de perda. Mas Mateus nunca esqueceu a frase: “Estude, menino.
Conhecimento é algo que ninguém pode roubar.” Ele se formou engenheiro de dados, trabalhando
enquanto estudava. Aos 27, lançou uma startup de impacto social que empregava dezenas.
Clara virou enfermeira pediátrica, especialista em atendimento a crianças vulneráveis. Sabia na pele
o que viveram. Entraram com envelopes em mãos. Dentro, documentos de uma casa simples,
quitada em nome de Helena, e um documento que garantia que ela pudesse parar de trabalhar se
quisesse.
Helena, em prantos, disse: “Vocês não precisavam tanto.” Mateus respondeu: “Precisávamos. A
senhora plantou uma semente de dignidade quando éramos invisíveis. Essa semente germinou,
cresceu, floresceu.” Clara completou: “Queremos que a senhora viva tranquila. Que saiba que fez
nosso mundo renascer.”
Os clientes do botequim, que assistiam em silêncio, começaram a aplaudir baixinho. A cozinheira
emergiu da cozinha, emocionada. Aquela noite ficou marcada na memória de Helena. Enquanto
guardava seus utensílios pela última vez, pensava em como um ato simples — oferecer alimento,
calor, olhar de humanidade — pode ecoar por décadas.
Ela sempre acreditou que fazer o bem era obrigação. Nunca buscou reconhecimento. Mas a vida lhe
ensinou: bondade genuína, ainda que pequena, pode transformar destinos, gerar ciclos que se
perpetuam no tempo. Que não precisamos ter muito para mudar vidas — só precisamos estar atentos
ao outro. E um café quente, um prato simples, um gesto de acolhida podem ser o ponto de virada
entre o desespero e a esperança.
Se você acredita que nenhuma dor é maior que a promessa de Deus, comente: EU CREIO! E diga
também: de qual cidade você está nos assistindo?
Fabulasreais