Denise Galvão
Chovia como se o céu tivesse lembrado de chorar por todos.
As gotas batiam nas telhas de zinco com um som que era meio música, meio tristeza.
Raul , de dez anos, ajeitava o guarda-chuva velho — uma relíquia de tecido esgarçado, cabo torto e alma teimosa.
Ele o abria com cuidado, como quem desperta um passarinho ferido.
Na mochila, levava pacotinhos de balas coloridas.
“Balas da sorte”, dizia, mesmo sabendo que eram mais açúcar do que cor.
Mas era o que tinha pra vender, e vender era o que ele podia fazer.
O avô tossia sem parar, lá em casa, o corpo pequeno sob o cobertor gasto.
A mãe costurava de madrugada, costurava até o corpo pedir pausa.
O pai... o pai era uma lembrança que já tinha feito as malas há tempo demais.
Raul não chorava mais por isso.
Descobrira cedo que chorar não enchia o prato, nem comprava remédio.
A chuva engrossou.
Ele se postou na esquina da padaria, debaixo de uma marquise que pingava devagar.
Chamava as pessoas com voz doce, como quem oferece o que tem de melhor.
— Balinha, moça? É baratinho. — dizia.
Alguns passavam sem ver, outros sorriam com pressa, e uns poucos paravam só pra não se sentirem culpados.
Mas cada moeda era um degrau rumo ao frasquinho de xarope que custava vinte e três reais.
Vinte e três reais que pareciam o preço do mundo inteiro.
No meio da tarde, o vento virou a sombrinha e Raul riu, sem saber se ria ou chorava.
Foi quando um carro preto freou ao lado dele.
Um homem desceu, apressado, sapatos caros já encharcados.
— Quanto pelas balas, garoto? — perguntou.
— Um real o pacotinho, moço.
— Me dá tudo.
O menino contou rápido, as mãos tremendo, e estendeu os saquinhos.
O homem pagou com uma nota de cinquenta e já voltava pro carro.
— Moço, o troco! — gritou Raul, correndo até a janela.
O homem olhou pra ele, um olhar cansado mas doce, desses que lembram alguém que já se foi.
— Fica com o troco, menino. — disse. — Você merece!
E partiu.
A chuva diminuiu como se respeitasse o instante.
Raul ficou ali parado, com a nota molhada na mão, sem saber se o que sentia era sorte, milagre ou só amor em disfarce.
Correu até a farmácia, o coração aos pulos.
Comprou o remédio, e ainda sobrou pra um bolo pequeno.
À noite, o avô bebeu o xarope devagar, com a calma dos que aprenderam a agradecer por migalhas.
A mãe chorou, mas em silêncio — o tipo de choro que vem junto com orgulho.
— Onde arrumou o dinheiro, meu filho? — perguntou ela, tocando de leve o ombro do menino.
Raul sorriu:
— Foi a chuva, mãe. Ela me deu sorte.
Ela o abraçou.
E naquele abraço, o guarda-chuva velho escorregou pro chão, aberto, recolhendo as gotas que ainda insistiam em cair — como se também quisesse guardar um pouco de ternura.
Dias depois, o avô já ria de novo.
Sentava-se à porta, o rosto voltado pro sol, e Gabriel ao lado, girando o velho guarda-chuva como se fosse um mastro de bandeira.
— Tá vendo, menino? — disse o avô, com a voz rouca. — Deus não abandona os seus filhos.
Gabriel sorriu, sem responder.
Entendeu que algumas riquezas não cabem no bolso — moram no peito.
E que há dias em que ser homem não é crescer, mas proteger quem a gente ama.

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