sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Pedro e a Boneca de Sapato Azul


Denise Galvão

Pedro tinha nove anos e mãos pequenas, mas calejadas de tanto segurar a escova de engraxate.

Todo dia, depois da escola, ele ia pro mesmo canto da praça — perto da banca de jornal — e estendia o caixote onde estava escrito com tinta torta:

“Engraxo por 1 real.

O movimento era melhor à tarde. Homens de terno, moços apressados, velhos que ainda lustravam o sapato antes de ir jogar dominó.

Pedro sorria pra todos. Tinha aprendido que um sorriso aberto valia mais do que qualquer propaganda.

Não trabalhava por vaidade.

Trabalhava por um sonho: uma boneca de sapato azul.

A irmã, Daniela, faria quatro anos na semana seguinte, e há meses pedia pela boneca que vira na vitrine da lojinha da esquina.

— Ela pisca, Pedro! E fala “mamãe”! — dizia, com os olhos brilhando como se fosse mágica.

Pedro sorria, mas por dentro doía. Sabia que a mãe mal conseguia pagar o arroz e o leite.

A mãe saía cedo pra limpar casas e voltava exausta, cheirando a desinfetante e cansaço.

O pai tinha ido embora fazia quase dois anos, deixando uma caixa de ferramentas velha e um silêncio que não passava.

Então Pedro decidiu: ele daria a boneca pra irmã.

Mesmo que tivesse que engraxar mil sapatos.

Durante dias, ele juntou moedinhas num potinho escondido debaixo do colchão.

Às vezes, deixava de comprar o pastel que tanto gostava pra guardar mais uns centavos.

— Tá com fome, meu filho? — perguntava a mãe, percebendo a barriga roncando.

— Tô não, mãe. Comi um pão na escola — mentia, olhando pro chão.

No sábado, faltavam só dois reais pra completar o valor da boneca.

O dia estava nublado, o vento cheirava a chuva, e a praça quase vazia.

Pedro ficou ali, firme, esperando algum cliente.

Quando o primeiro pingo caiu, ele pensou em desistir.

Mas aí apareceu um homem de guarda-chuva preto e sapatos sujos de barro.

— Ei, pequeno, dá tempo de dar um brilho aqui? — perguntou ele.

— Dá sim, moço. Vai ficar parecendo novo!

O homem riu.

Enquanto Pedro trabalhava, contou que tinha um filho da idade dele.

Quando o menino terminou, o homem pagou com uma nota de dez reais.

— Moço, é muito! — disse Pedro, surpreso.

— É pouco pelo capricho. Compra alguma coisa boa pra você.

Pedro agradeceu, a voz tremendo, e saiu correndo, o coração batendo rápido.

Na lojinha da esquina, a boneca ainda estava lá.

Vestido cor-de-rosa, sapatos azuis, e aquele olhar de vidro que parecia sorrir pra ele.

Pedro esticou o dinheiro no balcão com a mão suada.

— É essa mesmo, moça. A que fala “mamãe”.

A moça embalou num papel colorido e deu um laço.

Pedro saiu abraçado ao pacote como se carregasse o próprio coração.

Na manhã do aniversário, Daniela acordou com o cheirinho de bolo simples — feito pela mãe antes de sair pro trabalho — e um presente sobre a mesa.

— É pra mim? — perguntou, com os olhos arregalados.

— Abre, Dani. — disse Pedro, disfarçando o nervosismo.

Quando ela viu a boneca, soltou um gritinho.

— Ela fala! E tem sapato azul! Igual eu queria!

Abraçou o irmão com força.

Pedro riu, tentando segurar o choro.

— Feliz aniversário, Dani.

A mãe chegou mais tarde e encontrou os dois brincando no chão da sala.

Daniela fazia a boneca dormir, e Pedro a observava, quieto, sorrindo.

Ela olhou pro filho, percebeu os dedos manchados de graxa e entendeu tudo.

Não disse nada — só o abraçou.

Um abraço longo, apertado, cheio de orgulho e dor misturados.

Naquela noite, enquanto Daniela dormia abraçada à boneca, Pedro olhou pela janela.

O vento batia leve, como um carinho.

Ele pensou no pai, pensou na mãe, pensou na vida.

E, pela primeira vez em muito tempo, sentiu que tinha feito algo grande.

Porque às vezes — ele entendeu — ser homem não é ter dinheiro nem força.

É fazer alguém sorrir, mesmo com as mãos sujas de graxa.

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