quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Mônica De Castro

Mônica de Castro

Espiritismo independente: sem compromisso com dogmas, conceitos e pré-conceitos. Apenas com a verdade que liberta.Se você busca um conforto, uma palavra amiga, um estímulo ou coragem, você veio ao lugar certo. Esqueça o peso das culpas, o medo da vida, as mágoas acumuladas, a raiva silenciosa. Nada é irreversível, se você se perdoa e acredita na sua mudança. É isso o que ofereço aqui.


Início






Este é o universo em seu incessante movimento pela busca do autoconhecimento, através da libertação das ilusões da matéria e da busca do amor genuíno. A páginas que fazem parte desse pequenino cosmo têm por finalidade investir no ser humano, para que cada um consiga, sozinho, alcançar a verdadeira iluminação, que é aquela que decorre do aprendizado das verdades de Deus.Você é o seu próprio universo. Inicie o seu movimento de transformação.




Quem sou eu







Mônica de Castro



Nenhum de nós é uma pessoa comum. Somos todos especiais aos olhos de Deus. E eu sou alguém que acredita no valor da vida de cada um que habita este planeta. Como você. Eu acredito em você, porque acredito em mim e acredito em Deus. Afinal, não somos todos UM?

 Sou Assim





Mônica de Castro

É um pouco difícil falar de nós. A gente se expõe e não sabe o tipo de julgamento que vai provocar nas pessoas. Nem sempre o outro nos vê como a gente se vê. Tudo bem, é assim mesmo. A gente se divide entre o Eu e o Outro e, geralmente, os dois não estão de acordo. Então, aqui vai o que eu penso a respeito de mim mesma.



Sou organizada, mas nem tanto. Na verdade, minha organização está focada em certos aspectos, deixando muito a desejar em outros. E tenho mania de largar o que estou fazendo para começar outra coisa, que surgiu a partir da primeira. Tipo um spin off de tarefas.

Sou alegre, mas, às vezes, fico um pouco deprimida. Isso porque também tenho meus momentos, minhas decepções e dúvidas, arrependimentos e desejos. E como já aprendi a lidar com as frustrações, passo por cima de tudo e continuo sorrindo.

Sou boa, mas não boazinha. Tenho também um lado obscuro, selvagem, principalmente quando estou diante da mentira, do desrespeito e da injustiça. Eu me irrito um pouco com a falta de noção de alguns. Resultado: eu nunca agrido, mas, dependendo, não consigo deixar de reagir.

Sou tolerante, mas, nem sempre, paciente. Existem pessoas que tiram a gente do sério… Ou melhor, a gente se permite sair do sério por causa de certas pessoas. Como sei que sou assim, procuro me afastar, quando percebo que não vou dar conta de ficar quieta.

Sou amiga, porém, não gosto de apegos. Nada melhor do que a liberdade para expressar genuinamente o que sentimos. E, cá entre nós, ninguém precisa estar grudado para mostrar que gosta.

Sou carinhosa e nada ciumenta. Sou sensível, não piegas. Não sou muito de me emocionar com lágrimas. Não é frieza, não. Acho que está mais para percepção de alma. O que me emociona mesmo é sentir que as lágrimas partem do coração, ao invés de brotar apenas nos olhos.

Sou afetiva, mas não sentimental e muito pouco romântica. Ser objetiva faz parte da minha natureza. Isso não quer dizer que eu nunca ame ninguém. Eu amo, só que do meu jeito, dentro do meu limite, que pode parecer pequenininho para alguns, mas que, para mim, é muita coisa.

Sou bastante crítica comigo mesma. Perfeccionista, sabem? Reconheço as minhas virtudes, mas também os meus defeitos. Estou tentando modificá-los sem atropelos, juro. Algumas vezes consigo, outras, não. Mas nunca deixo de tentar.

Sou vaidosa como toda mulher, mas não sou de ostentação nem exibicionismo. Gosto de me sentir bem comigo mesma, independentemente da opinião alheia. Se eu sorrir ao me olhar no espelho, está tudo bem.

Sou orgulhosa das minhas conquistas, do caminho que escolhi na vida, do tanto que lutei para alcançar meus objetivos, das muitas renúncias que tive que fazer para conquistar meu lugar no mundo. E mais ainda me orgulho de ter conseguido tudo isso sem perder a dignidade, a empatia, a espontaneidade. Continuo sendo eu mesma.

Sou um pouco ingênua… Tá bom, meio idiota mesmo. Acredito em tudo que todo mundo fala. Daí que é muito fácil me enrolar. E o pior é que não aprendo. Estou sempre caindo na lábia de alguém. A menos que seja uma questão jurídica. Aí, não tenho nada de boba.

Sou bastante acessível a todo mundo. Gosto de ajudar, faço o que posso. Até abro mão de algumas coisas pelo outro, desde que não me agrida nem me machuque. Se for para me contrariar ou me fazer ficar mal, aí não faço, não. Ou só vou até um certo ponto.

Sou consciente dos meus limites. Respeito as pessoas como respeito a mim mesma. Procuro não as invadir nem lhes cobro nada. Ouço o que têm a dizer, sem julgar nem criticar. Não guardo rancor nem mágoa, perdoo com facilidade e peço perdão quando reconheço que pisei na bola.

Sou compreensiva, pois entendo que cada um faz o que pode e dá o que tem. As pessoas são diferentes, ou então, ficaríamos todos estagnados, pois são as diferenças que nos ensinam o quanto somos iguais. Sem preconceitos, né?

Sou muito família. Não no sentido de apego, de fazer questão de estar todo mundo junto. Eu, hein! Acho que cada um deve correr atrás da própria vida. Mas faço de tudo pela felicidade da minha família.

Sou altamente desligada e dispersiva. Me distraio com qualquer coisa, esqueço tudo, não me prendo a coisa alguma. Mudo de ideia a toda hora, deixo tudo pra depois, não sou de fazer planos nem tenho método. O que faço num dia, no outro, já é diferente. Mesmo assim, me considero uma pessoa inteligente e dou muito valor a isso.

Sou fácil de se lidar. Basta ser verdadeiro comigo. Sempre, em qualquer circunstância, por qualquer motivo. Não gosto de subterfúgios, daquela história de falar uma coisa querendo dizer outra. Quem fala a verdade, ainda que doa, consegue tudo de mim. E não sou dada a melindres, o que facilita muito.

Sou sincera, embora não seja intrometida. Só dou a minha opinião quando me perguntam. Falo o quero, sem agredir. Não gosto de magoar ninguém, mas como acho que a mentira magoa mais do que tudo, digo o que penso de forma amorosa, ainda que firme.

Sou meio indiferente à vida dos outros. Não sou curiosa. Aliás, acho que sou a pessoa menos curiosa que conheço. Isso não quer dizer que eu não ligue para o outro. Eu ligo. Só não me intrometo nem tenho curiosidade de saber o que o outro faz da vida dele.

Sou assim… E mais alguma coisa de que agora não consigo me lembrar. Mas acho que o principal é isso aí.

O que mais admiro em mim mesma? A inteligência.

O que mais me incomoda? A dispersão.

Espírita desde menina, Mônica de Castro se tornou escritora em 2001, quando publicou seu primeiro romance,Uma História de Ontem Até então, não tinha conhecimento de que possuía mediunidade de psicografia, muito embora estivesse acostumada aos muitos fenômenos mediúnicos que vivenciou desde a infância.




Aos poucos, seus livros foram ganhando destaque, várias vezes figurando nas listas de mais vendidos na categoria autoajuda. Hoje autora consagrada, conta com mais de dois milhões de exemplares vendidos, o que a coloca entre as escritoras mais bem sucedidas de seu segmento.


Todos os Livros

01. Uma História de Ontem - 2001/2011
02.Sentindo na Própria Pele - 2002  - Trilogia (1º)
03. Com o Amor Não se Brinca - 2002 - Trilogia (2º)
04.Até que a Vida Os Separe -  2003
05.O Preço de Ser Diferente - 2004
06. Greta - 2005/2014
07.Segredos da Alma - 2006
08.Giselle, a Amante do Inquisidor -  2007/2013
09. Lembranças que o Ventp Traz - 2007 - Trilogia  (3º)-(final)
10. Só por Amor - 2008
11. Gêmeas - 2009
12.A Atriz - 2009
13. De Todo o Meu Ser - 2010
14.De Frente com a Verdade - 2011
15.Jurema das Matas - 2012
16.Virando o Jogo - 2012
17.Apesar de Tudo... - 2013
18. Momentos de Inspiração - 2013
19.Desejo - 2014
20. Impulsos do Coração - 2015
21. A Força do Destino - 2016
22. De Bem com a Vida - 2016
23.O Melhor Amigo do Inimigo - 2017
24.Nunca É Tarde para Mudar - 2018

Para Ler



São muitas as coisas que escrevo. Os artigos e as mensagens se acumularam ao longo dos anos.



Aqui você encontra alguns textos sobre os mais variados temas ligados ao espiritismo (ou espiritualismo, para quem preferir). Os artigos foram escritos diretamente para este site, mas as mensagens foram coletadas da minha página no facebook. Havia tantas que não quis perder um vasto material e decidi reunir tudo num lugar só.



Quando a gente lê alguma coisa que mexe lá dentro, parece que ela foi escrita para nós. E é isso mesmo. Normalmente, encontramos o que pedimos ou buscamos, embora, muitas vezes, não nos demos conta disso. Frequentemente, nos deparamos com as respostas aos nossos questionamentos, embora nem sempre elas nos favoreçam ou agradem. Quando isso acontece, temos a tendência de rejeitá-las ou negá-las, tentando nos convencer de que elas não são para nós e não têm nada a ver com nosso problema. Esse é um engano comum, porque tendemos a fugir do que não satisfaz ou do que contraria nossos desejos.



Mas não se engane nem se iluda. Se você leu, é porque foi escrito para você. Pare de resistir e aceite a sabedoria da vida, que fala conosco através de vozes desconhecidas e palavras silenciosas.



Espero que você encontre, aqui, algo que lhe sirva e que o ajude a se sentir bem e em paz com a vida.

Todos os romances

Nunca É Tarde Para Mudar


















Por que se prender ao ódio e à vingança? O perdão liberta. 



Perdão e liberdade estão intimamente ligados.



Deus não perdoa. Ele não precisa. Ele é o próprio perdão.



Hebron, cidade da Palestina, 1929. Um grupo de muçulmanos fanáticos promove um ataque aos judeus. O massacre é sangrento, cruel e inexplicável.



Décadas depois, mundo contemporâneo:


Bruno, jovem de família católica, desenvolve estranha obsessão pelo islamismo, ao mesmo tempo em que odeia os judeus. Apesar disso, apaixona-se por Tamara, moça judia, amiga do namorado de sua irmã. Tamara, contudo, o rejeita veementemente, fazendo aumentar, na alma de Bruno, um desejo de vingança nascido muitas vidas atrás. Da mistura de sentimentos confusos e incompreensíveis, surge o plano macabro que fará reviver o ódio adormecido, porém, nunca esquecido.

Cada vez mais envolvido pelo fanatismo islâmico, Bruno planeja e executa a obra máxima de sua vida, colocando em risco não apenas sua atual encarnação, como também, sua própria permanência no planeta.

Mas a vida obedece a critérios específicos de motivação espiritual, e não há atitude ou pensamento desprovido de causas, cujo conhecimento gravita no âmago mais distante e sombrio da consciência. Mesmo as obras mais cruéis e inexplicáveis possuem um sentido oculto, ainda que totalmente desvirtuado dos caminhos do bem e da moral. Todavia, como o mal não é eterno, a oportunidade de mudança nunca deixará de existir.

Não importa o quão obscuro foi o seu passado. Ser uma pessoa melhor depende da vontade e de suas próprias escolhas.

Prólogo 

Localizada próximo a Jerusalém, Hebron é um das quatro cidades sagradas dos judeus e uma das maiores da Palestina. É lá, na caverna de Macpela, que se encontram sepultados os Patriarcas hebreus e suas esposas: Abraão, Sara, Isaque, Rebeca, Jacó e Joyce. Acima, uma igreja foi erigida na época do imperador Justiniano, mais tarde convertida em mesquita islâmica.

Estreita faixa de passagem entre a África e a Ásia, a Palestina tornou-se cobiçada pelos mais diversos exércitos de conquistadores desde muitos anos antes de Cristo. As guerras de conquista se sucederam através dos séculos, passando a região ao domínio de vários povos, como egípcios, hebreus, romanos e árabes, dentre outros. Por fim, no século XVI, o Império Otomano ali se estabeleceu, até ser expulso pelos Aliados, na Primeira Guerra Mundial.

Enquanto isso, na segunda metade do século XIX, eclodiu na Europa o movimento sionista, dando início à migração de um grande número de judeus para o território palestino. A chegada dos judeus não foi bem vista pelas comunidades árabes lá estabelecidas, o que acabou gerando toda sorte de conflitos.

Com a derrota da Tríplice Aliança, da qual fazia parte o Império Otomano, sobreveio o fim da Primeira Grande Guerra. Assinado o Tratado de Versalhes, a Palestina foi dividida entre a França e a Inglaterra, cabendo a esta a região sul. Como os conflitos entre judeus e árabes eram constantes, a Liga das Nações concedeu o Mandato Britânico da Palestina, passando, à Inglaterra, sua administração legal. Em 1922, o Reino Unido dividiu a região em dois distritos administrativos, separados pelo rio Jordão, ficando os judeus com a zona oeste do rio, e os árabes, com a leste. A divisão não encerrou os conflitos. Ao contrário, tornou a rivalidade entre muçulmanos e judeus ainda mais acirrada.

Após tantos anos de guerras e conquistas, lavada com o sangue da humanidade, a terra ainda era palco de batalhas, rebeliões e disputas. Cada povo que por lá passava atribuía a si o domínio da região. Transferindo-se de governo a governo, ao longo de tantos séculos, seus legítimos possuidores acabaram perdendo-se no tempo. Todos tinham seus justos motivos para reivindicar a terra, esquecendo-se do fundamental: o mundo não é propriedade exclusiva de ninguém, mas de todos os povos, que deveriam conviver em harmonia e paz. As fronteiras existentes entre as nações são imaginárias, convenções do ser humano para assegurar sua soberania. Não foram estabelecidas por nenhum deus, para favorecer uma ou outra nacionalidade, pois todos os deuses, em essência, são apenas um só.

Em meio a essa disputa milenar, milhares de árabes e cerca de oitocentos judeus desfrutavam de uma convivência mais ou menos pacífica na cidade de Hebron. Uma parcela da população árabe, todavia, revoltava-se contra essa situação. Não eram poucos os que não viam com bons olhos seus vizinhos judeus, e as hostilidades aumentavam a cada dia. Espalhada pela cidade, uma onda de nervosismo e medo alcançou todos os segmentos da população, colocando ambos os lados em constante sobressalto.

Mesmo assim, a vida seguia seu curso. Muitos dos que lá residiam procuravam levar uma vida normal, dedicando-se ao trabalho, à família e aos estudos.

Acostumado a essas inquietações populares, o judeu Elias evitava envolver-se em conflitos ou dar ouvidos às provocações de seus conterrâneos árabes. Vivia normalmente, dividindo seu tempo entre a yeshivá, aonde ia para estudar a Torá e o Talmud, e o trabalho na loja de instrumentos musicais do pai.

Do mesmo modo que Elias, o árabe Munir também tratava de se manter distante de brigas. Embora influenciado pela visão do pai de que os judeus eram usurpadores de terras, não tomava partido em discussões nem demonstrava um temperamento agressivo, apesar de um tanto sombrio. Sonhava, um dia, tornar-se advogado para defender seus compatriotas injustiçados do jugo sionista, tudo dentro da legalidade árabe que ele imaginava perfeita.

Naquele 23 de agosto de 1929, o dia parecia haver iniciado mal para Elias. Para começar, acordara tarde, atrasando-se para a yeshivá. Depois do almoço, uma dor de barriga quase o impediu de comparecer ao trabalho, o que teria deixado o pai em maus lençóis. E apesar da insistência da mãe e da irmã para que ficasse em casa, Elias não queria prejudicar o trabalho na loja.

Mesmo sentindo-se mal, partiu para o estabelecimento do pai. No caminho, notou uma movimentação diferente, uma espécie de aura de animosidade pairando no ar. Corria, na época, o boato de que, em Jerusalém, judeus estavam massacrando muçulmanos e tomando seus lugares sagrados.

Eram rumores infundados que não chegaram ao conhecimento de Elias. Por isso mesmo, não associou sua impressão de estranheza ao perigo iminente. Julgando tratar-se de sua imaginação, distorcida pelo mal-estar matinal, não deu atenção a seus instintos e subiu a rua, a caminho do trabalho.

Enquanto isso, Munir ouvia, em silêncio, a conversa entre o pai e os tios. Tinha horror a tudo aquilo, mas sabia que o pai jamais permitiria que ele não tomasse parte no que quer que fosse que estivesse para acontecer. Desde bem pequeno, Munir sofria com o temperamento do pai. Ibrahim era violento, grosseirão, autoritário, além de fortemente estrábico. O desprezo que sentia pelo filho era visível. Munir não tinha a força moral que ele gostaria para um filho varão. Era medroso, covarde, inseguro. Seu único filho não era o menino com que sempre sonhara.

Apesar de pertencer a uma família muçulmana tradicional, em sua juventude, Ibrahim viu-se apaixonado por uma moça judia. Seguindo a impulsividade própria da idade, Ibrahim transformara o sonho platônico na ilusão de que era correspondido. Declarou-se, abriu seu coração, implorou à jovem que aceitasse sua corte. A moça, porém, também de família judia rigorosa e tradicional, não correspondera aos sentimentos de Ibrahim, chegando mesmo a demonstrar indisfarçável desprezo pelas suas declarações, repudiando-o de forma arrogante e com um certo tom de desdém, fazendo ainda comentários pejorativos acerca de seu estrabismo.

O pai da moça interveio, escorraçando Ibrahim da porta de sua casa quase a pontapés, fato presenciado por toda a vizinhança, que lhe apontava o dedo como se ele fosse portador da peste. Humilhado, Ibrahim retirou-se, ocultando de seus próprios pais o episódio. A partir de então, iniciou-se uma sucessão de desencontros com o sexo feminino. O estrabismo o tornava mais feio do que realmente era, e Ibrahim não despertava a atenção das moças de sua época. Sempre que se interessava por alguém recebia, como resposta, categóricos nãos, seguidos de risos de escárnio e horror.

Até que, finalmente, o pai conseguira casá-lo com uma viúva mais velha que, em face de sua pouca beleza, tinha dificuldades em encontrar marido. Ibrahim a tratava mal, tão mal que ela acabou se apaixonando por um rapazola judeu, com quem manteve tórrido caso de amor. Descoberta a traição, Ibrahim tomou a única atitude que considerava digna em face da situação: Matou a mulher e o rapaz. Só não foi preso porque o pai conseguira, mediante a paga de considerável importância, transformar o assassinato em legítima defesa, o que levou ao arquivamento do caso.

O ódio de Ibrahim pelos judeus e as mulheres se transformou em justificativa para a prática de todo tipo de desmandos. Foi assim que o incidente de Jerusalém, muito embora de veracidade duvidosa, funcionou como o estopim que fez explodir todo seu rancor e que legitimaria a adoção de medidas duras e violentas.

– É verdade, estou dizendo – afirmou Ibrahim, convicto. – Jerusalém está um caos. Os judeus estão massacrando nosso povo, violando nossos lugares santos!

– Não acredito – contrapôs Abdul. – Tenho amigos judeus e sei que eles jamais fariam isso.

– Devia se envergonhar do que diz – objetou Ibrahim, furioso. – Fazendo amizade com o inimigo! Devia ser queimado junto com ele!

– Calma, irmãos – ponderou Omar. – Acho que só devemos agir depois que tivermos certeza.

– Vocês são dois covardes! – bradou Ibrahim. – Estão com medo de quê? Dessa polícia inglesa vendida e mal aparelhada que nós temos? Podemos lidar com eles, com todos .

Abdul e Omar entreolharam-se, em dúvida. Omar só queria tomar providências se os boatos se comprovassem verídicos, ao passo que Abdul não acreditava em uma única palavra do que andavam dizendo. A discussão entre os três continuava acalorada, acompanhada por um Munir mudo e assustado. Em dado momento, o pai virou-se para ele e, dedo em riste, esbravejou:

– E você, não se atreva a acovardar-se como seus tios! É chegado o momento de você demonstrar que é um homem de verdade, que não tem medo de vingar a morte de seu próprio .

À beira das lágrimas, Munir não se atreveu a encarar nenhum dos três. Temia que descobrissem seu segredo: apaixonara-se por uma garota judia. Não que houvesse planejado aquilo, mas Ruth o impressionara desde a primeira vez em que a vira, tocando violino na loja do pai.

– Não se trata de covardia – objetou Abdul –, mas de bom-senso e de justiça. Essas notícias de violência não fazem sentido. E depois, mesmo que fosse verdade, deveríamos deixar que as autoridades resolvam o assunto.

– Que autoridades? – zombou Ibrahim. – Todo mundo sabe que os judeus são os queridinhos dos britânicos. Querem nos expulsar e entregar a eles as terras que, há séculos, nos pertencem.

– Nesse ponto, Ibrahim tem razão – concordou Omar. – Não sou a favor de violência, mas a justiça há de ser feita. As terras são nossas. E se eles realmente massacraram nosso povo em Jerusalém, temos que reagir.

– Vocês são doidos – tornou Abdul. – Isso é só uma desculpa para incitar ainda mais a violência. Quem espalhou esses rumores deve ter algum motivo obscuro por detrás deles.

– Eu digo que temos que reagir – insistiu Ibrahim. – Rebelião, já!

Nesse momento, ouviram-se batidas na porta. A um sinal de Ibrahim, Munir se levantou para abri-la. Era Mustafá, um vizinho nacionalista, membro da Associação Muçulmano-Cristã.

– Vocês ainda não estão sabendo? – indagou em tom abafado, passando para o lado de dentro e fechando a porta.

– Sabendo o quê? – tornou Ibrahim, curioso.

– Estive hoje na estação. Ia viajar para Jerusalém com um grupo, para averiguar os fatos, mas o superintendente Cafferata nos impediu, insistindo em afirmar que tudo não passa de boatos.

– Eu não falei? – adiantou-se Abdul, com ar vitorioso. – Isso não podia mesmo ser verdade.

– E você acredita, Abdul? – irritou-se Mustafá, seguido pelo olhar de aprovação de Ibrahim. – Todo mundo sabe que Cafferata não passa de uma marionete dos judeus.

– É isso mesmo – concordou Ibrahim, com veemência. – É claro que ele quer conter a massa, porque somos em muito maior número do que os judeus e a própria polícia, que tem poucos homens, velhos e despreparados.

– Mas isso não é tudo. Estão todos indo, agora mesmo, se reunir em frente à yeshivá Hebron. Aquela corja tem que pagar.

– Vamos todos! – exaltou-se Ibrahim. – Juntemo-nos aos justos, em nome de Alá!

– Alá é um deus de paz – objetou Abdul. – Isso é coisa dos homens, não de deus.

Postado diante da porta, Abdul pretendia impedi-los de sair. Temia que o pior acontecesse não apenas a seus irmãos, mas também aos estudantes inocentes da yeshivá.

– Saia da frente, Abdul! – bradou Ibrahim. – Se quer ser covarde, seja sozinho.

– Omar, você, que é mais sensato, ponha juízo na cabeça dura desse nosso irmão – apelou ele.

Confuso, Omar encarou os irmãos. Tinha dúvidas sobre a veracidade das notícias, mas não queria ser taxado de covarde, muito menos ter o seu orgulho manchado por uma horda de assassinos judeus.

– Temos que averiguar – disse ele, por fim. – Não podemos simplesmente fechar os olhos e fingir que nada está acontecendo. Se o que dizem é mentira, voltaremos para casa pacificamente. Do contrário, vamos à luta!

– Vocês são loucos – sussurrou Abdul, vencido e assustado. – Isso só pode acabar em tragédia.

– Que seja! – gritou Mustafá, totalmente dominado pelo fanatismo cego. – Morte aos judeus!

Estimulado pelos gritos do outro, Ibrahim empurrou o irmão para o lado e saiu feito uma bala, seguido por Mustafá, Omar e um tímido Munir, que não ousava sequer levantar os olhos. Chegando à yeshivá, a situação aterrorizou Munir, que nunca havia presenciado um ato de violência em toda sua vida. Em meio aos estilhaços dos vidros quebrados das janelas, jazia o corpo esfaqueado de um estudante. A seu redor, uma multidão furiosa gritava impropérios, exigindo justiça para os massacrados em Jerusalém.

Quando Cafferata chegou ao local, era tarde demais. Por sorte, a yeshivá estava praticamente vazia, mas o pobre jovem que ainda estava lá, temendo por sua vida, arriscara-se a sair, sendo agarrado pela multidão e esfaqueado até a morte. Cafferata olhou o corpo do rapaz com angústia. A situação estava fugindo ao seu controle, e ele nada podia fazer. Não tinha homens suficientes e a ajuda não vinha de Jerusalém. Se os árabes investissem contra eles, era bem provável que fossem massacrados, pois a polícia não dispunha de efetivo suficiente para conter a rebelião.

Em casa de Elias, a situação era alarmante. As notícias chegavam por intermédio de conhecidos que haviam conseguido fugir das garras dos revoltosos. Abel, pai de Elias, discutia com o cunhado a respeito da situação.

– Precisamos fazer alguma coisa – afirmou Ezra, com raiva. – Isso não pode continuar assim. Quem eles pensam que são?

– Concordo que é um absurdo, mas temos que acreditar nas nossas instituições – comentou Abel. – Tenho certeza de que a multidão será contida e os culpados, punidos.

– Ninguém vai ser preso, você vai ver. Devíamos tomar a justiça em nossas mãos.

– Eles são em maior número – contrapôs a irmã, Esther. – E depois, não temos armas.

– Estou com medo, mamãe – choramingou Ruth. – Atacaram a yeshivá onde Elias estuda. Mataram um menino de lá.

– Tenha calma, querida. A polícia vai conseguir conter essa rebelião.

– Duvido muito – retrucou Isaac, primo de Esther. – Esses árabes são uns animais. Deviam todos ser fuzilados.

– Nosso vizinho é árabe e é uma pessoa de bem – arriscou Elias.

– Não existem árabes de bem – desdenhou Ezra. – Concordo com Isaac. Eles são todos uns animais, aliás, piores do que animais. São feras que merecem a morte.

– Esses pensamentos só fazem aumentar a aura de violência que paira sobre a cidade – censurou Esther. – Devíamos era estar pensando em uma maneira de encontrar a paz.

– Paz?! – irritou-se Ezra. – Ficou louca, Esther? Desde quando se pode argumentar com essa gente?

– O problema é que eles não se conformam com o fato de que nós estávamos aqui muito antes deles. Quando essa corja imunda de árabes chegou, nós já havíamos nos estabelecido nessa terra. Eles querem o que nos pertence.

– Essa questão já se perdeu no tempo – ponderou Abel. – Esther tem razão. Não devíamos lutar por isso quando podemos viver todos em paz.

– De jeito nenhum! – objetou Ezra, com veemência, seguido pelo olhar de aprovação de Isaac. – Jamais aceitaria dividir a terra que é nossa com esses monstros.

– Cada um tem suas razões – insistiu Esther. – Todo mundo acha que a terra lhe pertence, mas nada pertence a ninguém. As terras são de Deus, e nós não temos o direito de querer tomar posse do que Ele apenas nos emprestou.

– Não cabe falar de religião agora – contrapôs o irmão. – A questão é política.

– Deixemos isso para amanhã – alertou Abel. – Já está ficando tarde, as crianças precisam dormir. Amanhã, com certeza, tudo terá retomado a normalidade.

– Tirando a dor da família do menino morto – considerou Isaac, com um certo desdém –, tudo será normal para os demais.

– Não estamos menosprezando a dor dessa família. Sou pai, sei como eles devem estar sofrendo. Mas isso não é justificativa para incitarmos ainda mais o ódio. A polícia vai conseguir resolver essa situação.

– Vá esperando…

– Vamos, Ezra – chamou Isaac. – Já é tarde, e não creio que seja seguro andar pelas ruas a essa hora.

– Quero ver se algum árabe tem coragem de me agredir! Acabo com ele apenas com a força dos meus punhos.

– Tenha calma, irmão – pediu Esther. – Vamos tentar manter a calma. Se não por você, pelos nossos pais. Imagine o desgosto que lhes dará.

Despediram-se em clima de tensão. Ezra e Isaac chegaram a suas casas em segurança, apesar de um tanto quanto atemorizados. Esther mandou os filhos para a cama e recolheu-se com o marido, rogando a Deus que os protegesse.

Na casa ao lado, Hadi mantinha-se de joelhos, corpo virado na direção de Meca. Embora houvesse concluído o último Salah do dia, permanecia ajoelhado, olhos cerrados, em profunda concentração. A mulher, que o aguardava para dormir, tocou de leve o seu ombro, chamando-o baixinho:

– Não vem dormir, Hadi? Já passa da meia-noite.

Ele abriu os olhos lentamente, fixando-os na esposa com ternura.

– Desculpe-me, minha querida – falou carinhosamente. – Mas é que estou tão preocupado! Essa situação toda me deixou muito transtornado e aflito. Temo pelo pior.

– Você acha que não vai parar por aí?

– Não sei. Sinto um aperto na garganta, uma sensação de desgraça que não sei definir. Orei muito para que Alá nos dê proteção, que proteja a todos indistintamente, judeus e muçulmanos, pois somos todos filhos de um mesmo deus. Não podemos permitir que essas diferenças nos transformem em seres cruéis e vingativos. Somos irmãos perante qualquer força que se queira chamar de deus.

– Só você pensa assim, meu querido. A maioria das pessoas ainda está presa às convenções religiosas criadas por elas próprias. Daí sobrevêm tantos conflitos, tantas injustiças, tantas tragédias. Deus mesmo não quer nada disso. Quer apenas que as pessoas se amem.

– Alá é um deus de amor, Nabilah. Assim como o Deus dos judeus, dos cristãos, dos budistas e outros que nem conheço. Não pode existir deus se não há amor.

Nabilah ajoelhou-se ao lado do marido, envolveu as mãos dele nas suas e acompanhou-o na oração. Não queria que nada de mau acontecesse a ninguém. Bastava o assassinato do menino judeu, que fora um despropósito e uma crueldade. Quando, por fim, o cansaço os venceu, adormeceram nos braços um do outro.

O Melhor Amigo do Inimigo



Este é um livro que tenta nos alertar para a realidade do que se passa na natureza, da qual fazem parte todos os animais. O mundo também é deles.



Todos aqueles que amam os animais provavelmente se identificarão com as palavras contidas nesta obra.



Bruce é um cão levado, sempre alegre e que, se pudesse, estaria em todos os lugares ao mesmo tempo. Mesmo assim, sua energia não se esgotaria. Logo, sua fidelidade – como a de qualquer animal de estimação – é inabalável. Porém, isso não foi suficiente para lhe poupar. Ele conhecerá o sofrimento e verá quão cruel o ser humano pode ser.

Mas nem tudo está perdido. Em uma história emocionante e inspiradora, você aprenderá o verdadeiro sentido da amizade, da lealdade e da possibilidade real de mudar. Todos merecem uma segunda chance, por pior que tenham sido no passado.

Prólogo 

Era como um sonho em que predominava o sentido da audição. Em meio à confusão, o que sobressaía era o barulho; muito barulho. Buzinas, apitos, gritos, estrondos… Teria o céu vindo abaixo, fazendo despencar sobre a Terra fragmentos da Lua?

A visão, meio turva, não conseguia conciliar as luzes brilhantes com a dissonância dos ruídos estridentes, a única coisa que ele captava em meio àquela balbúrdia. O que estaria acontecendo, meu Deus? O mundo só podia ter disparado para fora do eixo, fugido da realidade e se atirado de cabeça num turbilhão de desordem. Ou seria de tragédia?

Aos poucos, a vista foi retornando ao foco, embora se divertisse pregando-lhe peças. Alguém poderia explicar-lhe como é que o chão, uma coisa inanimada, sem vida, de repente, ganhara movimentos sinuosos, contorcendo-se num bailado de horror e agonia? De onde, afinal, surgira aquele fantasma escarlate, todo animadinho, que serpenteava pelo chão com tamanha intimidade…?

Com vagar, os sons se reencontraram, estabelecendo uma certa harmonia na orquestra do terror. Os fantasmas desfocados se reuniram em coisas únicas, dando forma a pessoas atarantadas e veículos enfileirados num tráfego lento. Gente que corria de lá para cá, imprimindo pegadas vermelhas e viscosas no negrume do asfalto, ignorando que ele estava ali.

Moisés não entendia. Por que ninguém notava sua presença naquele mundo desgovernado? E que mundo era aquele, afinal? Como fora parar ali sozinho e onde estava seu amigo? Aturdido, olhou para os lados, à procura… No meio daquela multidão, era difícil encontrar. Será que alguém o havia levado?

Vagueando de um lado a outro, o que encontrou foi o assombro, estampado nas feições que se desfiguravam em caretas horrendas diante dele. A princípio, pensou que aqueles olhares perplexos se dirigiam a ele. Aborrecido, torceu o nariz e gesticulou com os punhos, mandando a turba se danar. O que pensavam que ele era? Alguma atração bizarra? Podia não ser nada agora mas, um dia, ele fora alguém.

Aos poucos, notou que os olhos das pessoas não se detinham nele, mas num ponto além. Seguindo a direção para onde elas olhavam, o que viu foram mais e mais pessoas, algumas se movimentando freneticamente, outras, lutando para conter a multidão. Tudo muito estranho. Parecia até um acidente. Mas quem teria se acidentado? Um corpo jazia no chão, a poucos metros de onde ele estava. Sabia que era um corpo porque estava coberto por um plástico preto.

Uma mulher com cara de enfermeira passou rente a ele. Quase o pisou. Ele puxou os pés rapidamente, pronto para reclamar de sua falta de atenção. Foi quando, inesperadamente, o encontrou.

Ao lado da mulher, um homem de luvas levantava o corpo de um animal morto. Havia sangue espalhado por todo o seu lindo pelo preto e branco, algumas respingando no chão. O homem agiu com perícia. Apanhou o saco preto que a mulher lhe estendia e lá enfiou o cachorro, sem nem ao menos verificar se ele estava em agonia. Não estava. Mesmo sem o ver, Moisés sabia que o cão estava morto. Lágrimas lhe subiram aos olhos, descendo pelo rosto sem dificuldade. Não tinha receio nem vergonha de chorar. Era o seu amigo que ia ali.

Quando o homem passou por ele, Moisés decidiu segui-lo. Precisava saber aonde ele estava levando o seu cachorro. Não se lembrava de como o cão havia morrido, mas, já que acontecera, caberia a ele o privilégio de enterrar seu corpo. Fora o único e verdadeiro amigo que tivera por toda a vida. Tentando segurar o pranto, levantou-se de um salto, correndo atrás do sujeito, aos berros:

– Ei, moço! Pera aí! O cachorro é meu. Moço! Dá um tempo!

Nada. O homem não ligou a mínima para seus apelos. Mesmo assim, Moisés continuou atrás dele. Precisava recuperar o corpo de seu amigo. Queria despedir-se, beijar seu focinho gelado, como tantas vezes fizera ao longo da vida. E prantear a sua dor. Por que não dizer, o seu luto?

Já ia abrindo a boca para chamar novamente o camarada quando uma nova embalagemcaptou seu olhar. Um outro corpo entrava no saco preto, seguindo o mesmo destino do cão. Que coisa mais triste, ser relegado a um pacote sem nome no meio de uma estrada desconhecida. Um pouco hesitante, aproximou-se. Estranhamente, ninguém tentou impedi-lo. Mas também não lhe franqueou a passagem. Muito menos o chamou para perguntar o que ele fazia ali. As pessoas simplesmente agiam como se ele não existisse. Por acaso, ele era invisível?

Com a ideia da invisibilidade, veio uma dor aguda na lateral do corpo. Ele se curvou até quase tocar o chão, apertando as costelas para conter as pontadas agudas. De cabeça abaixada, espiou por um buraco que se abria entre as pernas dos profissionais que trabalhavam ali e, com assombro, constatou a verdade da qual já desconfiava. Uma mão enluvada puxava para cima o zíper do saco, encerrando para sempre, nas sombras da morte, o seu rosto magro que nunca mais abriria os olhos para aquele mundo.

De repente, a memória voltou, reproduzindo o inesperado infortúnio: Tostão correra para o meio da rua seguindo um gato. Nunca fizera isso. Sempre caminhara ao seu lado, sem necessidade de ser amarrado na coleira. Ele empurrava a velha carroça que os mais antigos conheciam como burrinho sem rabo, cheia de latas de alumínio e garrafas pet, que recolhia na praia para vender às cooperativas de reciclagem.

– Tostão! – gritara – Volta aqui! Deixa de ser bobo!

Tostão não deu a mínima. Saiu correndo atrás do gato, que disparou pela avenida movimentada. Com sua agilidade natural, o gato se desvencilhou dos veículos que corriam em alta velocidade, chegando ao outro lado ofegante, porém, em segurança. Tostão, contudo, não teve a mesma sorte.

Assim que avistou o ônibus correndo pela pista do BRT, Moisés soltou a carroça e praticamente se lançou no meio do tráfego. Sons estrídulos de buzinas o deixaram tonto, mas ele não se deteve. Correndo feito louco, atravessou a avenida, alcançando o cachorro ao mesmo tempo que o coletivo. O motorista ainda tentou frear, mas a velocidade não deu aos freios a chance de travar apropriadamente as rodas, e o veículo se chocou contra os dois com violência fenomenal. Moisés foi atirado longe, e Tostão pareceu flutuar.

Sangue espirrou por todo lado, encharcando carne e vísceras. Ossos fraturados, veias dilaceradas, a morte de ambos foi imediata. Não deu nem tempo de sofrer. A certeza da morte não foi tão rápida. Moisés sabia, mas preferiu não acreditar que havia morrido, apesar de sempre acreditar em vida após a morte. Desde que a mãe partira, quase vinte anos antes, sabia que existia algo além daquela vida. Vira-a, por diversas vezes, circulando pela casa, assim como ouvira seus conselhos, em sonhos, quando a mulher o deixara.

Por causa da traição da esposa, Moisés caíra na mendicância. Tamanho o desespero, deu para beber, foi despedido do escritório de contabilidade, vendeu o que tinha e o que não tinha para afogar as mágoas na bebida. Cheio de dívidas, perdeu tudo o que a mulher não levou, até a dignidade. Sem dinheiro, largou o álcool. Não gostava mesmo de beber. Só o fazia porque era uma forma eficaz e rápida de não pensar na esposa.

A vida nas ruas lhe acenou como a única possibilidade de sobrevivência. Moisés ainda tentou evitar aquele destino cruel, mas faltavam-lhe forças. Vendido o apartamento, sua parte na meação, a princípio, deu para pagar um quartinho fétido numa pensão de quinta. Mas até isso ele perdeu, no dia em que o cheque foi devolvido por falta de fundos. A dívida do cheque especial se avolumara de tal forma, que nem o acordo que o banco lhe propusera permitiria quitá-la. Podia entrar na Justiça para tentar diminuir os juros, mas de que adiantaria? Ainda que tivesse que pagar apenas o valor histórico do débito, sem juros nem nada, o dinheiro não chegaria.

Apelou para alguns parentes, mas todas as portas se fecharam diante dele. Sua única irmã lhe virou as costas, horrorizada com o flagelo em que ele se tornara. Tinha alguns primos distantes, com os quais nunca se relacionara, que o receberam pela porta dos fundos, alegando dificuldades financeiras. Amigos… Sumiram assim que ele decaiu. Só lhe restou mesmo o abandono das ruas.

Por esse motivo, ele se apegou tanto a Tostão. Encontrara-o num saco de lixo jogado no rio Trapicheiros. A descida até as águas não foi difícil, e ele conseguiu resgatar o animal com vida, um filhotinho de cão vira-lata preto e branco. A afeição mútua foi rápida e recíproca, tornando-os amigos inseparáveis. Tostão era a única criatura no mundo que realmente o amava. E agora se fora.

A morte foi uma surpresa, mas não propriamente um choque. No fundo, Moisés se questionava se aquele destino não teria sido melhor. Talvez fosse, desde que ele não se separasse de seu mascote. Aonde Tostão fosse, ele iria também. Por isso, não hesitou em seguir o agente do centro de controle de zoonoses. Entrou no carro e sentou-se junto ao corpo do cão, chorando sem parar.

– Onde está você, meu amigo? – indagou, angustiado por não ver o espírito do animal junto ao corpo. – Os cães não têm alma?

A partir desse ponto, não se lembrou de mais nada. Simplesmente apagou. Quando acordou, viu-se num lugar estranho, porém, muito confortável. Era um quarto pequeno, reluzente de tão branco. Uma cama perfumada e macia. Um jarro de água cristalina e convidativa, pousado na mesinha ao lado. Sedento, apanhou o copo e encheu-o, sorvendo o líquido rapidamente. Estalou a língua, olhando ao redor. Era bem parecido com o que vira em alguns filmes e novelas.

– Oi! – chamou. – Não tem ninguém aqui?

Em resposta, a porta se abriu, dando passagem a uma figura diáfana e brilhante. Moisés sentiu um arrepio, mas não foi de susto. Sabia estar diante de um espírito do bem, embora o achasse um tanto parecido com um fantasma.

– Estou aqui – foi a voz doce, que se aproximou para alisar seus cabelos.

Moisés soltou o copo em cima da mesa e abraçou-se a ela. Reconheceu-a pela voz, em primeiro lugar. Depois, quando o espírito adquiriu uma aparência um pouco mais sólida, distinguiu, nitidamente, o semblante de sua mãe.

– Mãe… – balbuciou ele, emocionado. – Não acredito… Como é bom ver você novamente!

Lucélia o envolveu com ternura. Fazia alguns anos que desencarnara, um tanto jovem ainda, vítima do câncer de mama. Fora muito bem recebida, recuperara-se maravilhosamente e agora auxiliava na recepção dos recém-desencarnados. Sentia muitas saudades de Moisés e nenhuma do marido, que a abandonara por uma mulher mais jovem, com quem vivia até hoje.

– Não está triste porque desencarnou? – ela perguntou, ainda afagando os cabelos dele, tal qual fazia quando ele era criança.

– Não – foi a resposta firme. – O que tinha a vida a me oferecera além de desgraça? Minha mulher me deixou, perdi emprego, casa, tudo. Nem dignidade possuo mais.

– Engano seu. Você é uma pessoa muito digna. Aceitou sua nova condição sem se revoltar e seguiu vivendo honestamente.

– Ninguém quis me ajudar, mãe – ele choramingou, lembrando-se de todos os que lhe viraram as costas.

– Não guarde raiva nem ressentimento. Cada um agiu da forma que pôde. E depois, se você reencarnasse em meio a parentes que lhe estenderiam a mão, como faria para cumprir seu destino?

– Destino?

– Não se lembra? – ele meneou a cabeça. – Foi você que quis virar mendigo. A vida apenas colocou no seu caminho pessoas que o ajudaram a realizar esse desejo.

– Mas por que diabos eu desejaria ser mendigo? – indignou-se, um tanto quanto incrédulo.

– Isso não importa agora. Pense apenas no que de mais importante você aprendeu.

– A passar fome?

– Acha mesmo que isso é o mais importante?

– Não propriamente. O mais difícil foi engolir o orgulho.

– É por aí mesmo. Você foi lapidar o seu orgulho. E o fez dignamente, devo reconhecer. Nós aqui ficamos muito satisfeitos com você.

– Nós quem?

– Eu e todos aqueles que o conhecemos e torcemos por você. Seus amigos.

– Amigos… Não tenho nenhum, a não ser… – ele levantou os olhos, esperançoso. – Cadê o Tostão? Estava indo atrás dele quando apaguei…

– Você foi adormecido para ser trazido para cá. Eu, pessoalmente, cuidei de seus ferimentos, para que seu corpo fluídico não guarde sequelas do acidente. Sente-se bem?

– Muito bem – afirmou, apalpando as costelas, que não doíam mais. – Mas você não respondeu a minha pergunta. Onde está o Tostão? Tem alguém cuidando dele?

– Tem, claro. Só que ele não está aqui.

– Onde está? Quero vê-lo.

– Ele já foi levado.

– Para onde?

– Para um lugar onde cuidam de animais. Será tratado e, posteriormente, encaminhado de volta à sua essência coletiva.

– Essência coletiva? Como assim? O que é isso?

– Os animais possuem uma espécie de alma-grupo, para onde retornam após desencarnar, carregando com eles as experiências que adquiriram em sua última existência. É o que lhes dá o instinto, que é inato em todo ser vivo.

– Que coisa mais fria, mãe! – indignou-se. – E injusta, e insensível também! Os animais não são como gotas de água, que se atira num balde e fica tudo misturado! Eles têm sentimentos!

– Essa é a analogia mais utilizada para explicar o fenômeno…

– O quê? Água no balde? Não me interessa nada esse tal fenômeno. Quero o meu cachorro de volta!

Ele se agitava freneticamente, caminhando pela sala como um louco acometido por incontrolável fúria.

– Acalme-se, meu filho. Tudo é feito com amor, dentro da mais perfeita harmonia. Não há sofrimento, nem dor, nem tristeza.

– Mas se fizerem isso com o Tostão, ele vai deixar de ser o meu Tostão, não vai?

– Infelizmente, sim – respondeu ela, espantada com a rapidez com que Moisés compreendera o processo. – Ele integrará a essência como um todo.

– Ou seja, ele vai perder a identidade dele.

– Vai… – ela afirmou, hesitante.

– Isso não está certo! Não podem fazer isso com o Tostão, ainda mais sem o meu consentimento. Ele é o meu cachorro!

– Tenha calma, Moisés. É para o bem dele.

– Não é, não. Tostão ficará bem se ficar comigo. Você tem que me ajudar a recuperá-lo.

– Não posso interferir nesses assuntos. Não é atribuição minha.

– E de quem é? – ele perguntou, levantando-se bruscamente da cama. – Quero falar com essa pessoa. Tostão não pode sumir, não pode.

Moisés chorava, descontrolado. Achava que morrer seria um bem, mas agora parecia um pesadelo. Podia aceitar qualquer coisa, até mesmo parar no inferno, menos separar-se de Tostão.

– Ele não sofrerá nenhum mal – ponderou Lucélia. – É a lei natural da vida.

– Lei natural? Todos os cães passam por isso?

– Não exatamente – admitiu. – Alguns auxiliam na recuperação dos espíritos, outros estão prontos para reencarnar como pessoas e ficam aguardando.

– O que faz um cão virar gente? – interessou-se, acalmando-se um pouco.

– A proximidade com o ser humano, que lhe transmite uma grande porção de amor ou de ódio. São sentimentos tão poderosos que, vividos com intensidade, imprimem naquele ser experiências que se tornam únicas e que acabam por despertar nele uma consciência ainda rudimentar, mas uma consciência verdadeira, uma noção de sua própria existência, de que é um indivíduo capaz de sentir e pensar por conta própria, ainda que o faça de uma forma precária e inconsciente. Essas experiências se transformam em memórias individuais, que são arquivadas no corpo mental, gerando emoções e pensamentos específicos, que fazem com que ele sinta e pense com algum discernimento. Ele sabe que é único e sua mente não aceita mais qualquer associação que possa desfragmentá-la. Perde, então, os ligamentos energéticos responsáveis por reintegrá-lo ao grupo. É como a matéria-bruta que, depois de beneficiada, não pode mais retornar a seu estado primitivo. Ou como a inteligência artificial que, ao ganhar a capacidade de pensar e sentir, afasta-se de sua natureza tecnológica para aproximar-se da essência humana.

– E o que acontece?

– Ele se destaca e retorna ao plano astral, onde é recolhido e cuidado.

– E o Tostão não pode ser um desses?

– Sinceramente, meu filho, não sei. Na verdade, não sei muito sobre esse assunto. Conheço o processo em geral, mas não o que acontece caso a caso.

– Pois eu digo que pode. Tem que poder. Não vou permitir que meu Tostão vire água no balde, não vou.

O grau de perturbação dele tornou-se preocupante. Tanto que Lucélia pediu ajuda aos enfermeiros, que tentaram segurá-lo.

– Vocês não podem me prender! – gritou, exasperado. – Sou um homem livre!

– Não queremos prendê-lo – Lucélia tentou tranquilizar. – Só queremos que você se acalme.

– Quero sair daqui! Quero ir embora! Onde está o Tostão? Aposto como ele está perdido naquela avenida, me procurando. Quero o meu cão! Vou encontrá-lo. Preciso encontrá-lo!

O pensamento ligado no cachorro formou uma ponte energética com a terra, e Moisés, inesperada e inexplicavelmente, se viu de volta ao local do acidente. Não imaginava como fora parar ali, mas não importava. Não sairia dali sem o Tostão. A mãe dissera que ele estava sendo cuidado, mas onde? Não fazia a menor ideia. Talvez não fosse nada disso e ele tivesse simplesmente fugido. Sim, era possível. Tostão era esperto e, muito provavelmente, ao perceber a maldade que iam fazer com ele, arranjou um jeito de escapulir e voltar para a terra, assim como ele havia feito. Só o que tinha era que procurar.

Os carros passavam, alheios à sua presença. Moisés achou engraçado não ser atropelado por nenhum veículo. Podia sentir-se poderoso, mas não se sentiu. Ao contrário, lutava contra a sensação de impotência, do medo de nunca mais encontrar Tostão. Com esse pensamento, levantou a cabeça e olhou para os lados, tentando imaginar por onde começaria sua busca. Foi quando avistou uma pet shop do outro lado da rua. Era o lugar perfeito para Tostão se refugiar e esperar por ele.

– Já estou indo, meu amigo.

Com essas palavras, Moisés cruzou a avenida movimentada e, sem abrir a porta da pet, entrou.

Apesar de Tudo ...




















Um filho é excelente estímulo às mudanças.



Vivemos em um mundo onde as convenções e as regras ditam preconceitos injustificáveis e cruéis. As ilusões sociais nos levam, muitas vezes, por caminhos de uma falsa superioridade, que nos torna cegos diante das verdades da vida. Somos todos iguais, e isso importa na liberdade que temos de ser diferentes, pelos padrões ditados por uma sociedade de aparências.



Somente quando conseguirmos nos desapegar de todas as ilusões criadas pela arrogância e o orgulho humanos é que seremos, realmente, livres.



Capítulo 1



O céu cinzento era prenúncio de que muita chuva ia cair naquele fim de domingo. Leontina estugou o passo, na tentativa de iniciar a subida até sua casa antes do temporal. Com as águas rolando, a lama desceria morro abaixo, tornando praticamente impossível subir sem um escorregão ou um tombo no lamaceiro.



– Vamos logo, Clementina – falou para a irmã. – Vai desabar um pé d’água.


Estranhamente, Clementina havia estacado diante de um latão de lixo. Parecendo oscilar entre a repulsa e a curiosidade, remexia em seu interior com a pontinha dos dedos. Leontina parou também e se aproximou, maldizendo Romualdo, que punha a cabeça da irmã naquele desatino. Na certa, ele havia ameaçado ir embora novamente, deixando Clementina feito uma doida sem raciocínio. Será que nem o culto daquela noite servira para pôr um pouco de juízo na cabeça daquela doidivanas?

– Mas o que foi que deu em você, Clementina? – reclamou, tentando puxar a irmã pelo braço. – Quer ficar toda ensopada? Olhe que já está relampejando.

Um raio despencou nas cercanias, e o estrondo ensurdecedor do trovão que o seguiu causou um calafrio em Leontina. Ela se encolheu e clamou baixinho por Deus, deixando o olhar perdido no céu por uns instantes, tentando adivinhar onde caíra aquele relâmpago. Esperava, sinceramente, que não houvesse sido perto de sua casa. Mais um sacolejo e o barraco não resistiria: viria ao chão feito um caixote desmantelado.

Ela se virou para a irmã, ainda segurando-lhe o braço mas, antes que pudesse dizer novamente venha, ouviu um choro miudinho partindo de algum lugar abaixo delas.

– Ué! – exprimiu impressionada. – Será que tem alma do outro mundo por aqui? Acho melhor a gente ir, Clementina. Já estou até ouvindo coisas.

– Fique quieta, Leontina! – exasperou-se a outra. – Será possível que você ainda não notou?

– Ainda não notei o quê…?

A pergunta ficou no ar, a resposta não veio. Seguindo a direção do dedo da irmã, Leontina estacou estupefata. Na mesma hora, grossos pingos de chuva começaram a cair, e ela apertou a bíblia de encontro ao peito, segurando na garganta o grito de susto que por pouco não deixou explodir.

– Meu Jesus Cristinho! – exclamou, por fim. – Isso é o que eu estou pensando que é?

Ainda sem responder, Clementina afastou o trapo engordurado e puxou cuidadosamente o corpinho retorcido de um bebê. Ele soluçava baixinho, fraco demais para expressar no pranto a fome que a barriga sentia. Clementina entregou sua bíblia para a irmã e acomodou o bebê nu em seu colo. Imediatamente, a criança começou a balançar a cabeça, como se buscasse alimento no seio sem leite de Clementina.

– Ele está com fome e com frio – constatou ela, protegendo-o com o próprio corpo. – E todo sujo, cheio de assaduras! Venha, vamos levá-lo daqui.

Sem dizer nada, as duas dispararam pela rua, iniciando a subida da ladeira que dava acesso ao morro. A chuva engrossava a cada instante, raios se precipitavam por toda parte, seguidos da barulheira infernal da trovoada. Como a criança, assustada, começou a gemer baixinho, Clementina tentou proteger seus ouvidos, para que ela não se incomodasse tanto com os ensurdecedores trovões.

Por sorte o barraco de Clementina não era muito lá no alto, e elas logo entraram correndo, respingando lama no cimento da sala. Clementina levou o bebê para o quarto e deitou-o na cama. Ele estava completamente nu, o corpinho trêmulo roxo de frio.

– Coitado! – apiedou-se Leontina. – Quem será que teve a coragem de fazer uma malvadeza dessas?

– Não temos tempo para pensar nisso agora – respondeu Clementina, enquanto apanhava no armário um cobertor furado e o deitava sobre o menino. – O mais importante é aquecê-lo e dar-lhe de comer.

– E ele come o quê? É tão pequenininho…

– Deve beber leite. Vou esquentar um pouco. E água para lavá-lo.

– Como é que você vai dar de mamar a ele? Precisa de uma mamadeira. E quem é que vai sair nessa chuva para comprar uma? – O olhar de súplica de Clementina já dizia tudo, e ela objetou: – Ah! Não, nem pensar! Eu é que não vou sair nesse aguaceiro!

– Por favor, Leontina. Ele vai morrer!

– Vá você, então. Eu fico aqui, tomando conta dele. Dou-lhe banho e tudo.

– E se o Romualdo chegar? O que é que você vai dizer a ele?

– Que você foi até a farmácia e já volta.

– Como vai explicar o bebê?

– Digo que o encontramos na lata de lixo, ué!

– Ah! Leontina, por favor. Faça isso por mim, eu imploro. Não quero deixar o menino sozinho.

– Acho que o melhor é a gente entregá-lo à polícia.

– Depois pensamos nisso. Agora, o importante, é fazê-lo comer. Olhe só o coitadinho. Além de roxo, está magrinho que só. As costelinhas estão até grudadas na pele.

Vendo a magreza do menino, Leontina se deu por vencida. Levantou-se de um salto e falou, impaciente:

– Está bem, está bem. Vou à farmácia. Mas quem vai pagar a mamadeira é você.

Com um sorriso de vitória, Clementina puxou a bolsa de cima do armário e abriu-a, contando as notas com cuidado, para se certificar de que não faltava nenhuma.

– Aqui – disse ela, estendendo o dinheiro para a irmã. – Traga uma bem baratinha. E se lá vender fraldas, compre um pacotinho também.

– Descartáveis?

– É claro que não! Fralda descartável é muito caro. Traga um pacote de pano mesmo.

Lá se foi Leontina, debaixo de chuva, comprar mamadeira e fraldas para o bebê. Enquanto a aguardava, Clementina admirava a criança, orando a Jesus para que a salvasse. Era um bebê tão bonitinho! Escurinho, da cor do Romualdo. Bem podia ser filho dele. E dela…

O pensamento foi tão rápido que Clementina quase não o percebeu. Já pensava no bebê como se fosse seu filho. E por que não poderia ser? A mãe o abandonara, o jogara no lixo. Por que ela, que o encontrara, não podia ser a mãe dele?

Procurando não pensar naquilo, levantou-se para esquentar a água e o leite. A leiteira estava quase vazia, mas ainda havia o suficiente para alimentar a criança. Ela acendeu o fogão e pôs o leite em uma boca, colocando, em outra, uma chaleira com água. Sentou-se à mesa para esperar, de olho no bebê. De onde estava, podia avistar o quarto, contíguo à sala que também servia de cozinha. Do outro lado, um banheiro minúsculo e, ao fundo, um pequeno quintal.

O leite era tão pouco que logo esquentou. A água demorou um pouco mais. Clementina apagou o fogo, voltou para o quarto com a chaleira e derramou a água morna numa bacia. O bebê estava de olhos fechados, tão quieto que ela temeu que tivesse morrido. Ela colocou a mão debaixo do seu nariz, para sentir-lhe a respiração que, de tão fraca, parecia que ia sumir. O peito ossudo subia e descia regularmente, embora sem muito vigor. Teve medo de que ele não resistisse.

– Por favor, Jesus – orou ela com fervor. – Não deixe o bebezinho morrer. Ele é tão pequeno, tão indefeso, tão puro… Ajude-me a cuidar dele para que sobreviva…

– Falando sozinha, Tina?

Clementina deu um pulo da cama e fitou o recém-chegado com espanto. Romualdo estava parado no umbral da porta, olhando-a com olhos vermelhos, encharcados de pinga. Aproximando-se, puxou-a com rispidez, beijando-a com volúpia. Ela afastou o rosto, torcendo o nariz, e reclamou:

– Solte-me! Não suporto esse seu cheiro de cachaça.

– Você está sempre reclamando – contestou ele, a voz pastosa e engrolada.

Quando Romualdo fez menção de se atirar na cama, Clementina soltou um grito estridente:

– Cuidado!

Com o susto, ele olhou para o leito. Só então percebeu o bebê adormecido sob o cobertor e a bacia com água sobre uma cadeira. De tão pequeno, dava a impressão de ser uma trouxinha de roupa em que ele mal havia reparado.

– O que é isso? – perguntou ele, tentando focar a vista na criança.

– Um bebê. Não está vendo?

– Isso eu sei. Mas de quem é?

A resposta foi tão repentina que até Clementina se surpreendeu:

– É meu. Meu filho.

– Que besteira é essa, mulher? Desde quando você tem filho? E ainda mais um bebê feito esse? Então eu não ia ver a sua gravidez? – Ele riu de si mesmo e voltou a mirar a criança, que permanecia imóvel sob as cobertas. – Está vivo?

– Está dormindo – falou ela, sem muita convicção.

– Parece morto.

Impressionado, Romualdo aproximou o rosto do bebê, que ainda não se mexia. Cutucou-o com os dedos, até que ele abriu os olhos e choramingou baixinho.

– Olhe só o que você fez! – censurou Clementina. – Acordou o pobrezinho.

Romualdo se aproximou da mulher, que havia pegado a criança no colo, e afagou sua cabecinha.

– É tão bonitinho!

– Você acha?

Ele assentiu e tornou curioso:

– Fale sério, Tina. De quem é?

– É meu, já disse.

– É claro que não é seu. Vamos, conte-me. É do pastor com alguma pilantra lá da igreja?

– Não fale assim do pastor! – rebateu ela furiosa. – Se você fosse à igreja, talvez não bebesse tanto e se acertasse na vida.

– Está bem, desculpe – ele abaixou os olhos, envergonhado, e mudou de assunto: – Ele parece estar com fome.

O bebê agora chorava com mais vontade. Clementina ninou-o gentilmente, tentando acalmá-lo.

– Não chore, bebezinho. Mas onde está a Leontina com essa mamadeira?

– Leontina foi comprar mamadeira?

– Como você espera que eu o alimente? Ele ainda não sabe beber em copo.

– Verdade… – ele ficou olhando a criança, até que continuou: – Tina…

– O que é?

– Você ainda não me disse como foi que ele veio parar aqui.

Não tinha jeito. Clementina não queria se afastar do bebê, mas precisava contar a verdade a Romualdo.

– Você jura que não conta a ninguém? – ele assentiu. – E vai me ajudar a ficar com ele?

– Ficar com ele? Mas Tina, o bebê tem mãe…

– Não tem, não! Mãe nenhuma faz o que fizeram com ele.

– Você já está fazendo mistério demais. Quer me contar logo de onde foi que veio essa criança?

– Primeiro você tem que prometer. Vai me apoiar ou não?

– Como posso apoiá-la numa loucura?

– Quando você conhecer toda a história, aí sim, vai ver o que é loucura.

– Muito bem. Vou apoiar você, desde que não tenha sequestrado o bebê.

– Que sequestrado o quê? Por acaso sou alguma criminosa?

– Deixe de enrolar e conte logo.

Clementina contou tudo em minúcias, acompanhando os olhares de espanto de Romualdo a cada passagem da narrativa. Ao final, ele estava com os olhos marejados mais pela emoção do que pelo efeito do álcool, que agora quase não sentia.

– Viu por que tenho que ficar com ele? – concluiu. – A mãe é uma irresponsável, criminosa. Onde já se viu deitar o filho fora na lata de lixo?

– Que horror! Tem razão quanto à mãe, mas acho que você não vai poder ficar com ele.

– Por que não? Fui eu que o achei.

– Um bebê não é um guarda-chuva que a gente apanha nos achados e perdidos. A polícia não vai deixar você ficar com ele.

– Quem falou em polícia? Não vamos contar nada.

– E você acha que ninguém vai descobrir?

– Só se você falar.

– Abra os olhos, Tina! As autoridades virão aqui buscá-lo.

– As autoridades não vão saber! Podemos registrá-lo como nosso filho e ninguém nunca vai ficar sabendo.

– Registrá-lo? Agora, sim, ficou louca de vez.

– Pense bem, Romualdo. Nós sempre desejamos ter um filho, mas Deus não nos deu. Agora, recebemos esse de presente. Por que temos que nos desfazer dele?

– Porque ele não é nosso. E a mãe, provavelmente, já deve estar atrás dele.

– A mãe o jogou no lixo! Ela não o quer. E ele também não haveria de a querer se soubesse o que ela fez.

– Olhe só para ele, Tina. Nós nem sabemos se ele vai sobreviver. E se esse bebê morrer nas nossas mãos? Você já pensou na encrenca em que vamos nos meter?

– Ele não vai morrer. E não diga mais isso. É só Leontina chegar com a mamadeira, que vou alimentá-lo. Ele vai sobreviver, vai crescer forte e lindo. E vai ser o nosso filho.

– Posso saber como você pretende fazê-lo passar por nosso filho?

– Você vai ao cartório e o registra como nosso. Pronto.

– Eu nunca registrei filho nenhum… não é preciso apresentar nenhum papel?

– Não sei, mas posso perguntar ao pastor. Ele deve saber.

– Logo ao pastor? Aí mesmo é que você não vai ficar com ele. O pastor vai obrigá-la a entregar a criança ao juizado de menores.

– Eu vou descobrir, Romualdo. Tem advogados na igreja para quem eu posso perguntar. Depois, registramos a criança e nos mudamos. Ninguém vai ficar sabendo de nada.

Por um momento, Romualdo ficou tentado a dissuadir Clementina daquela loucura e entregar a criança ao juizado de menores. Contudo, olhando melhor para o pequenino, seu coração se apertou. Ele sempre quis ter um filho, mas Clementina jamais engravidara. Ele a acusara de estéril várias vezes, mesmo sabendo que o problema era dele, consequência da caxumba que contraíra na infância. O orgulho masculino, no entanto, o impedira de contar a verdade, e Clementina sempre vivera se culpando por não terem filhos. Dinheiro para um tratamento, ela não tinha, de forma que nunca ficou sabendo que a incapacidade era dele, não dela.

Não seria essa a oportunidade de compensá-la por aqueles nove anos de casamento sem filhos? Ela não era mais nenhuma jovenzinha, mas ainda tinha bastante tempo de vida para criar um filho e vê-lo crescer. Os dois podiam. E ele sempre quisera uma criança, muito embora, intimamente, se demonstrasse resignado com a própria esterilidade. Aquela não seria a sua chance?

Olhando para os dois, ninguém diria que não eram mãe e filho, que não tinham o mesmo sangue. Até fisicamente eram parecidos. O menino era mulatinho feito Clementina, feito ele. Os cabelos ainda eram ralos, mas já dava para perceber que cresceriam crespos iguais aos deles. Quem negaria que eram seus pais?

A decisão estava tomada. No dia seguinte, segunda-feira, Romualdo iria ao cartório se informar sobre o registro do menino. Se dissesse que ele nasceu em casa, quem iria contestar? A partir de então, o menino seria seu filho.

A Força do Destino












É preciso praticarmos o perdão não apenas pelo próximo, mas e, principalmente, por nós mesmos.

O que você faria se tivesse a oportunidade de modificar seu passado e, consequentemente alterar seu futuro? Aproveitaria essa chance e transformaria o pesadelo em sonho, ou ficaria paralisado diante da dúvida e do inevitável?

O tempo é uma infinita sucessão de mistérios e alguns estão bem ao alcance da compreensão de Jaqueline e Alícia. O que essas duas pessoas poderiam ter em comum?

Se você se libertar das limitações da mente racional, que tudo questiona, sem nada compreender, verá que o universo é único e que a ideia de separação é mais uma ilusão criada pela pequenez de nossa mente, para a qual é difícil compreender a grande verdade de que somos todos UM.



Prólogo

Tudo estava tão escuro! Escuro como a madrugada em que não é possível vislumbrarem-se as estrelas. Onde estariam elas? Será que ela atravessara a noite da vida sem nem ao menos perceber que não haveria mais amanhecer?

Ao longe, ouviu alguém chorar. Primeiro, um lamento feminino, suave, quase infantil. Depois, uma voz grave, desconsolada, assustada juntou-se à primeira. Não entendia o que estava acontecendo. Afinal, que choradeira era aquela?

O corpo estendido sobre a cama encheu-a de dúvidas. Rosemary fitou-o com incredulidade, pensando que lhe pregavam uma peça de muito mau gosto. Alguém havia estirado em seu leito um manequim igualzinho a ela! E ainda cuidara de maquiá-lo tal qual um defunto na véspera do sepultamento, antes de ser tratado na funerária. Francamente, deviam punir tamanho absurdo.

O absurdo, porém, ganhou forma. À medida que a manhã avançava, a cena insólita parecia desanuviar-se, revelando um quarto, um homem, uma menina e… um corpo. Mas que corpo? Como num sonho extraordinário, Rosemary se aproximou, constatando, para seu horror, que o manequim mal acabado não era propriamente uma réplica, mas seu próprio corpo jazendo, lívido, sobre o lençol amassado.

Aos poucos, a consciência foi retornando. Imagens aparentemente sem nexo se sucediam em sua mente. Lugares não percorridos, épocas não vividas, figuras desconhecidas. Tudo se misturava num redemoinho caótico de eventos singulares, nos quais ela era sempre a personagem central. Sangue, morte, lágrimas, ódio… Eram os ingredientes funestos na preparação da vingança.

E o perdão? Rosemary sentia, perdida em algum lugar de seus pensamentos, a frágil lembrança de que viveria pelo perdão. Mas tudo dera errado. As promessas do espírito perderam-se nas ilusões da carne, deixando de lado os compromissos assumidos diante da própria consciência. O mundo podia ser uma ilusão, mas, a seus olhos, era muito mais do que um devaneio fugidio: Era a certeza do prazer, da vitalidade, das paixões. Não era com isso que sempre sonhara?

Uma pontada de remorso fez pulsar seu coração. Ínfima demais para causar dor, mas forte o suficiente para incomodar um pouquinho. E agora? Estaria tudo perdido? Sabia, bem lá no fundo, que desperdiçara uma oportunidade única de se reconciliar com a vida e com Deus. Mas Deus não era impiedoso, saberia perdoá-la; e a vida… A vida era bem mais do que a desventura daquele momento.

Ainda assim, ela chorou. A vida era mais do que o que via, porém, menos do que ainda possuía, já que não possuía mais nada. Toda a sua vida, ou o que restava dela, se encontrava ali, acolhida pela insensibilidade do leito que, um dia, ela inundara de calor. Apenas um corpo frio, inerte, mortal.

Não era justo. Ou talvez fosse, diante das inúmeras injustiças que cometera contra quem mais deveria amar e proteger. Agora, olhando o mundo de uma outra perspectiva, percebeu que nunca conseguiria manter a palavra empenhada, a menos que uma força externa a compelisse. Sim, era isso. Não adiantava jurar, comprometer-se, planejar. Na volta, tudo é diferente. O jeito era, numa vida futura, construir um elo mais difícil de se romper e devolver o que tirou.

Foi nesse momento que a ideia começou a se delinear. A princípio, causou-lhe um arrepio de terror, só de imaginar a monstruosidade que resultaria daquele esboço aberrante. Mas, pensando melhor, talvez fosse a única solução. De qualquer maneira, aquele era um projeto para o futuro, se é que elas teriam um futuro. No momento, seu coração ainda se permitia dominar pela mancha negra do ódio, e a vingança insistia em se apresentar como a salvação de seu orgulho.

Foi com espanto que reparou na luminosidade que invadiu o ambiente. Não era uma luz forte, daquelas que cegam sem nem se olhar. Ao contrário, era uma luzinha pálida, débil, quase sem vigor. Ao ver aquele raio tênue estender-se em sua direção, Rosemary hesitou. Lá dentro, uma silhueta familiar acenava para ela, convidando-a para uma viagem através das estrelas. A ideia de se misturar aos astros parecia muito poética e apaixonante. Contudo, havia um empecilho. Ela não queria se misturar às estrelas. Preferia vê-las de baixo, como até então vinha fazendo.

Com esse pensamento, virou as costas para a luz salvadora, dizendo a si mesma que ainda não era hora de partir.

Impulsos do Coração











O valor do ser humano está no equilíbrio do seu coração. As distinções da carne foram criadas pelo homem. Deus não diferencia ninguém.

O que motiva a escolha pelo sacerdócio? Pura vocação? Uma decisão forçada por rumos inesperados que a vida toma? Ou é a alma que traça os rumos que a vida deverá tomar? Não importa. Para Augusto, ser padre é muito mais que devoção: é trabalho. O amor de uma jovem fugitiva, porém, ameaça suas ações na luta contra a ditadura imposta pelo golpe militar de 1964. Íntegro em seus princípios, mas dominado pela paixão, ele terá que confrontar suas verdades, suas convicções e seu próprio destino.

Capítulo 1

Quando as gotas da chuva começaram a tamborilar no vidro da janela, Augusto se virou de lado na cama, tentando tapar os ouvidos para afastar da mente a perturbação. Sempre gostara do ruído da chuva, contudo, naquele dia em particular, o plic, plic constante o deixava irritado. Passara a noite em claro, pensando na melhor maneira de dizer ao pai que não queria acompanhá-lo naquele dia, como não quisera em nenhum outro.

As manhãs de sábado já não tinham mais o mesmo sentido de prazer desde que o pai cismara de praticar seu mais novo esporte: a caça às capivaras, segundo ele, uma forma eficiente, barata e apetitosa de se preparar um almoço. Augusto, porém, tinha horror a sangue e à barbárie da caça, que tirava a vida de animais inocentes para alimentar o ego e o prazer do caçador. Ainda se fosse para não passar fome, não diria nada. Mas o pai caçava por puro esporte e justificava a matança com o aproveitamento da carne para alimento.

Com o travesseiro sobre a cabeça, Augusto aguardava a entrada do pai, vestido em sua usual calça jeans desbotada e calçando botas de borracha, próprias para caçar. Em pouco tempo, a porta se abriu. O som do atrito que as botas do pai produziam lhe causou um arrepio na pele. Augusto detestava o barulho de borracha molhada. Fazia-o lembrar da morte.

– Bom dia, filho – cumprimentou Jaime, já segurando na mão a espingarda. – O café está pronto. Vamos ver se a chuva dá uma trégua para a gente sair.

– Vamos caçar com esse tempo?

– É claro! Ande, não se demore.

De má vontade, Augusto espreguiçou-se e levantou-se da cama, fitando as árvores pela janela. A água escorria das folhas em abundância. Um pequeno pardal se encolhia debaixo de um galho mais grosso para proteger as penas encharcadas. Vê-lo causou imenso mal-estar em Augusto, pois sabia que o animalzinho, embora não fosse a presa visada pelo pai, era motivo de diversão na prática do tiro ao alvo.
Augusto virou o rosto para o outro lado, lutando para conter a revolta e as lágrimas. Odiava o que o pai fazia aos animais, contudo, não tinha coragem de protestar.

– Um dia vou-me embora daqui – pensou alto. – E nunca mais vou machucar nenhum animal. Eu juro.

– O que está dizendo? – era a voz de Jaime que, sem que Augusto percebesse, entrara no quarto para ver por que ele se demorava tanto.

– Nada – hesitou o menino, com medo da reprimenda.

– Nada, não. Ouvi claramente você dizer que queria ir embora daqui para não machucar os animais. – Augusto se encolheu, enquanto o pai prosseguia: – É isso que acha que fazemos? Que machucamos os animais?

– Eu não quis dizer isso…

– Quis, sim. Foi exatamente o que disse. Onde já se viu um homem com pena de bicho? Por acaso estou criando um frouxo?

Augusto abaixou os olhos, sem ousar responder ou encarar o pai, que agora elevava a voz em um tom acima do normal. A quase gritaria atraiu a atenção da mulher, que logo estava ao lado deles.

– O que está acontecendo aqui? – indagou ela, preocupada.

– É esse menino, Laura. Sabe o que ele disse? – Ela meneou a cabeça, e ele retrucou com ironia: – Que tem peninha dos pobres animaizinhos indefesos. Onde já se viu?

Laura encarou o filho com um misto de compaixão e censura. Era um menino lindo. Pele alva e macia, cabelos negros e lisos, uma irresistível covinha no queixo.

– Augusto ainda é muito novo – justificou ela. – Daqui a pouco ele muda.

– Tenho minhas dúvidas. Eu, na idade dele, já tinha matado até onça.

– Deixe de ser exagerado.

– É verdade, Laura, eu juro. Meu irmão e eu matamos uma onça imensa em nossa viagem à Bocaina . Uma suçuarana danada de grande.

– Deixe de contar vantagem, homem. Suçuarana corre até de cachorro.

– Ele também – apontou para o filho. – Esse menino tem medo até de mosquito.

– Eu não tenho medo – arriscou Augusto, encorajado pela presença da mãe – Só tenho… pena.

– Quem tem pena fica depenado – revidou Jaime. – Não sabe disso? E agora, deixe de besteira, ou não vamos conseguir caçar nada.

– Ainda não tomei meu café – protestou ele.

– E nem vai tomar. É o castigo pela sua frescura.

Foram de caminhonete até o ponto por onde entravam na floresta, o estômago de Augusto roncando de fome e revolta. Debaixo da chuva, ajeitou a espingarda sobre o ombro. Saiu seguindo o pai, pisando na lama, encharcando o chapéu de couro de boiadeiro. Os dois caminharam pela floresta durante um bom tempo, Augusto atrás de Jaime com uma raiva crescente e muda. Odiava a caça e mais ainda a si mesmo, por sua covardia em não conseguir dizer ao pai que não iria mais matar.

Depois de alguns quilômetros mata adentro, a chuva amainou. Uma nesga muito tímida de sol se aventurou por detrás das nuvens cinza, lembrando a Augusto o pelo de um animal tingido de sangue. Desviando o rosto do céu, fitou o pai, que havia estacado subitamente, a espingarda em punho apontando para um ponto específico na floresta, onde um estalido havia acabado de atrair sua atenção. Os estalos continuaram mais próximos. Algumas plantas e galhos mais baixos foram sacudidos por um animal invisível.

Instintivamente, Augusto se aproximou de Jaime. A movimentação era muito grande para uma capivara, e a lembrança da suçuarana que o pai afirmara ter matado encheu Augusto de terror. E se uma onça estivesse à espreita?

– Pai – sussurrou ele. – O que é?

– Chi! – fez Jaime, levando o dedo aos lábios.

Encolhido atrás dele, Augusto seguia aterrorizado. Queria fugir, mas não se atrevia, ciente do perigo que os rondava. O ruído foi se tornando mais próximo, e uma espécie de rosnado indistinto partiu do meio dos arbustos.

– É uma onça? – indagou ele, o mais baixo que seus lábios trêmulos e apavorados permitiam.

Jaime não respondeu a princípio. Mantinha a espingarda fixa num alvo invisível. De repente, os estalidos se intensificaram. Toda selva pareceu se mover junto com as patas do bicho. Augusto imaginou um galope felídeo, já visualizando a onça saltando em cima deles, quando um estampido ensurdecedor ecoou pela mata. Um ganido terrível atravessou a floresta. Caules e folhas se vergavam e partiam na direção oposta a eles. O animal estava fugindo.

– O que é isso, pai? – tornou ele, lutando contra o terror.

– Um lobo – disse Jaime finalmente, disparando em desabalada perseguição.

Correndo logo atrás, Augusto ofegava de medo e indignação. Pela primeira vez um lobo aparecia por aquelas bandas, e o pai queria matá-lo? Não parecia justo. Correram por um bom tempo, mesmo quando o barulho do animal foi sufocado pelos ruídos da floresta. As pegadas impressas na terra molhada e no capim amassado deixaram um rastro fácil de ser seguido. Jaime demonstrou toda sua tenacidade ao se embrenhar na selva atrás do bicho.

– Deixe-o ir – pediu Augusto. – Ele não serve para comer.

– Sua pele dará um bom troféu. E depois, eu nunca antes cacei um lobo.

– Mas pai…

– Silêncio, Augusto! Agora não é hora para frescuras.

Augusto se calou, seguindo o pai com lágrimas de raiva nos olhos, que ele conseguia ocultar entre o suor do rosto e os pingos esporádicos que desciam das árvores. Iam seguindo as pegadas do animal, cada vez mais se embrenhando na mata escura, até que alcançaram uma pequenina clareira. O mais silenciosamente possível, pararam e buscaram abrigo atrás de uma pedra. De onde estava, o animal se fez visível. Parecia um lobo, mas era um lobo-guará. Augusto reconheceu a espécie pelas ilustrações que vira numa enciclopédia na biblioteca da escola. Lindo, a pelagem avermelhada encobrindo boa parte de seu corpo.

Solitário, o lobo-guará olhava ao redor, visivelmente cansado e consciente da ameaça de morte. Farejou o ar, mas não conseguiu detectar seu caçador, posicionado contra o vento, fora de sua percepção. Ainda desconfiado, abaixou a cabeça para beber água de uma imensa poça que se formara com a chuva.

– Não é um lobo – esclareceu Augusto, na esperança de assim salvar o animal da mira do pai. – É um lobo-guará.

– Tanto faz… – murmurou Jaime.

As feições de Jaime estavam agora duras e implacáveis. Era como se todo o seu corpo participasse daquele processo de caça. Não movia um músculo nem piscava, nem dava mostras de respirar. Parecia uma estátua de gelo apontando na direção do extermínio.

Jaime segurava a espingarda na altura dos olhos, firmando a pontaria no animal. Enquanto mirava o lobo-guará, nem se dava conta da turbulência que crescia no coração de Augusto. Uma revolta sem igual foi tomando conta dele. A compaixão avolumou as lágrimas, que agora se sobressaíam do suor e das gotículas de chuva. Por que o pai tinha que matar? Que fascínio era aquele que o fazia sentir prazer ante a visão do sangue e da morte?

O animal parecia agora despreocupado, aparentemente confiante de sua segurança. Não percebia o caçador à espreita nem o menino que chorava de pena pela sua morte próxima. Em seu íntimo, Augusto vivia um dilema: queria impedir a matança, mas morria de medo do pai. Seu pensamento o acusava de covarde, seu coração lutava para impor a justiça e o equilíbrio na natureza. Não era certo nem justo matar os animais em seu habitat natural, indefesos e livres onde deveriam se sentir seguros. E o pai não era índio, não precisava caçá-los para sobreviver. Fazia-o por esporte e prazer.

Preso em seus próprios temores, Augusto não sabia o que fazer. Pelo canto do olho, viu quando a língua do pai umedeceu-lhe os lábios ávidos e percebeu o dedo indicador pressionando o gatilho. Ora Jaime o premia com mais força, ora relaxava, antegozando a vitória sobre o magnífico animal. Queria prolongar ao máximo aquele momento de glória, a excitação que o poder sobre a vida e a morte do lobo-guará lhe causava na alma.

Augusto agora não tirava os olhos do pai, acompanhando, em silenciosa agonia, o vaivém do dedo de Jaime no gatilho. A cada pressão que ele fazia, o menino engolia em seco. Fechava os olhos, à espera do estampido e do grito de agonia do animal. Não entendia por que o pai não atirava, embora soubesse que ele jamais desistiria.

Aquele momento pareceu-lhe uma eternidade cruel. Ficar ali, à espera da morte sangrenta do lobo-guará, era algo que ia muito além de coragem e covardia. Era uma questão de princípios, de acreditar no que era certo e resistir a toda forma de atitude abaixo de um mínimo de moral.

Jaime decidiu que já era hora de atirar. A alma preenchida com o gozo da conquista, pressionou com mais força o gatilho, movendo-o em sua direção para liberar a bala mortal e cúmplice. Foi uma ação estudada, meticulosamente elaborada e aguardada. O desfecho, contudo, seria rápido, preciso. Não daria ao lobo-guará a menor chance de fugir nem de sobreviver.

No exato instante em que Jaime disparou a arma, Augusto se atirou sobre ele, derrubando-o ao chão. O tiro, desviado, tomou outra direção, passando longe do lobo-guará. Tomado de surpresa, Jaime deu um safanão em Augusto e se levantou apressado, ainda a tempo de ver o animal sumir por entre as árvores, penetrando na floresta cerrada com a rapidez de uma lebre. Fez pontaria e atirou novamente, mas a bala passou longe de sua presa. Mais que depressa, recarregou a arma e tornou a atirar, atingindo o grosso tronco de uma árvore. Em vão. O lobo-guará havia escapado, embrenhando-se numa parte da floresta em que, Jaime sabia, não deveria segui-lo.

– Por que diabos fez isso? – perguntou ele irado, puxando o filho para cima pela gola da capa de chuva.

Augusto não respondeu, certo de que o pai já sabia a resposta, e começou a chorar.

– Maricas – desdenhou ele. – Meu filho de onze anos é um maricas! Uma bicha!

– Não sou bicha! – protestou com raiva. – Eu só não queria que você matasse o lobo-guará.

– Ah! não queria, não é? É amiguinho dos bichos, igualzinho às menininhas da escola, que vivem colecionando joaninhas!

– Não gosto de matar os animais – soluçou. – É maldade. Por que você não entende isso?

– Fez-me perder a presa por nada – tornou em tom de desprezo. – Porque tem peninha de bicho. Queria ver se ele nos atacasse.

– Ele não nos atacou. Só queria viver. Por que você não pode respeitar os animais? Por que não pode me respeitar?

– É isso, Augusto? Acha que não respeito você? – ele não disse nada. – Pois que filho covarde merece respeito? Respeito é para homens, não para maricas.

– Já disse que não sou maricas! – gritou. – E se fosse, também merecia respeito.

A bofetada veio rápida e certeira. Augusto levou a mão à face avermelhada, sentindo as lágrimas transbordarem em abundância.

– Só o que você sabe é chorar – menosprezou Jaime. – Nem parece meu filho. Teria sido melhor se tivéssemos uma menina, ao invés de um maricas medroso feito você. Ao menos ela não precisaria de desculpas para agir feito mulher.

Augusto engoliu o choro, enquanto Jaime lhe virava as costas, tomando o caminho de volta. O menino o seguiu em silêncio, encolhendo-se sob a capa para se proteger da chuva que voltara a cair. Pensou que o pai fosse continuar a caça, em busca de alguma capivara, mas ele desistiu. Com a espingarda no braço, rumou para casa sem trocar uma palavra que fosse com ele.

Daquele dia em diante, Jaime não levou mais Augusto para caçar.

Desejo












O que fazer quando o amor filial vira obsessão e loucura?

Até onde você seria capaz de ir para satisfazer os seus desejos?

Daniela ainda era uma menina quando percebeu que não era como as outras. Enquanto as garotas agiam de acordo com sua idade, ela tinha que lutar contra os próprios instintos e sufocar seus sentimentos mais íntimos, para não cair em tentação e revelar o seu terrível segredo.

Uma confissão chocante. Uma vida marcada por julgamentos. Uma história arrebatadora, que vai desafiar tabus e expor um amor obsessivo, originado em vidas passadas.

Capítulo 1

Gostaria de poder dizer que estava triste com tudo aquilo. Mas a verdade é que não estava. Meu pai foi um homem cruel e frio, e sua partida desta vida, com certeza, não deixaria saudades no coração de ninguém. Muito menos no meu.

A meu lado, meu irmão chorava com olhos secos. A dor transparecia em seu semblante como se fosse verdadeira. E era. A dor era verdadeira, mas o motivo era bem outro, e só eu o sabia. Passei a minha vida inteira a seu lado e o conhecia como ninguém, a ele e a meu pai. Nós, durante muitos anos, vivêramos em paz mas, logo após a morte de minha mãe, meu pai se transformou num estorvo em nossas vidas, e nós o teríamos matado, não fosse a imensa covardia que nos dominava.

Eu estava distante, suando sob o calor daquele sol tórrido, e nem percebi que os agentes funerários já haviam terminado de baixar o corpo à sepultura. Minhas tias, fingindo sofrimento, choravam copiosamente, talvez esperando que meu pai as houvesse agraciado com algum quinhão de sua pequena fortuna.

Ao fim dos serviços funerários, meu irmão se acercou de mim e falou:

– Por favor, Daniela, podemos ir?

Eu olhei para ele profundamente penalizada. Sim, queria partir dali, segurar em sua mão e fugir com ele para bem distante, onde ninguém nos conhecesse. Éramos felizes juntos, mas nossas vidas haviam se tornado sórdidas demais para serem compartilhadas, e não podíamos mais voltar a ser o que fôramos um dia. Nenhum de nós podia. Nem meu pai, que partira para o outro lado sem a chance de um adeus.

Depois de alguns segundos, acariciei o seu rosto e respondi com ternura:

– Está bem, Daniel, creio que já não há mais mesmo o que fazer por aqui.

Eu peguei na sua mão e comecei a me afastar, e os demais presentes puseram-se a nos seguir. Seguindo pela alameda do cemitério, pude ouvir fragmentos de suas conversas:

– E agora, o que será deles? – indagou uma tia.

– Acho que Daniel vai cuidar da irmã – respondeu outra.

– Será? Mas é tão novinho ainda – acrescentou uma terceira.

– Quase uma criança – observou uma vizinha.

E por aí foi a conversa. Mas ninguém se atrevia a falar diretamente conosco. No fundo, eu sabia o que estavam pensando. Queriam cuidar de nós, os abutres, para poderem colocar as mãos no dinheiro de papai, dinheiro que era nosso. Mas não precisavam. Eu já não era mais nenhuma criança e podia muito bem cuidar de mim e de Daniel. E depois, eu sabia que eles não se importavam mesmo conosco. Se se importassem, não esperariam papai morrer para demonstrar isso e teriam tentado superar a barreira de sua intolerância e rabugice para nos ver. Mas não. Quando papai passou a destratá-los, eles se acomodaram, e nós fomos ficando esquecidos pelo resto da família.

Daniel e eu éramos gêmeos e, por isso, recebêramos nomes semelhantes. Eu nascera cinco minutos antes, forte e robusta, mas Daniel viera ao mundo extremamente magro e franzino, e quase não sobreviveu. Talvez por isso tenha sido um fraco a vida inteira e sempre precisou de mim para cuidar dele e protegê-lo. Ele era extremamente bonito e generoso, e eu o amava acima de todas as coisas na vida.

Nessa época, contávamos apenas dezenove anos e vivíamos sozinhos em uma bonita casa no interior, um pouco afastada do centro da cidade. A casa era ampla e arejada, na verdade, uma pequena chácara, e meu pai era dono de uma próspera fábrica de vidros, o que lhe rendera uma fortuna razoável, que agora nos pertencia. Nós não tínhamos vontade, meu irmão e eu, de administrar pessoalmente os negócios e então mandamos chamar um dos advogados de papai, doutor Osório, pessoa da mais alta lisura e confiança.

Doutor Osório foi nomeado nosso gestor de negócios e deveria nos prestar contas no final de cada mês, depositando no banco o dinheiro que nos caberia. Com isso, nós tínhamos mais tempo para nos ocuparmos um do outro, e isso era tudo o que queríamos. Agora sim, poderíamos realizar nosso sonho de viver as nossas vidas sem qualquer intromissão, sem alguém que nos dissesse o que era certo ou errado, ou que era hora de parar. Pensando nisso, eu olhei para meu irmão e sorri, lembrando-me de quando tudo começou.

Certo dia, eu estava deitada numa rede na varanda quando vi Daniel se aproximar. Ele vinha correndo, trazendo nas mãos uma rolinha ferida, provavelmente quando tentara alçar seu primeiro voo.

– Daniela! Daniela! Veja o que achei – e exibiu-me o pássaro ferido, todo encolhido na palma de sua mão. – Será que vai morrer?

Eu examinei o animal com olhar crítico e dei o meu diagnóstico:

– Não vai não. Ele só está machucado. Provavelmente, foi a queda.

– O que faremos com ele?

– Não sei. Talvez seja melhor perguntarmos à mamãe.

Nós tínhamos treze anos e ainda não havíamos descoberto o quão estranha e ingrata a vida podia ser. Mas, naquele momento, nossa única preocupação era o animalzinho ferido, e corremos em busca de nossa mãe, que sempre resolvia nossos problemas com amor e bondade. Fomos encontrá-la na cozinha, ocupada com os preparativos do almoço. Nós tínhamos três empregadas em casa, mas minha mãe adorava cozinhar para meu pai. Ela o amava e o colocava acima de qualquer coisa, à exceção, talvez, de mim e de meu irmão. Ao ver-nos entrar apressados, ela soltou o frango que estava recheando e perguntou:

– Mas o que é isso, meninos? Aconteceu alguma coisa?

– Mamãe, mamãe! – dizia eu. – Daniel encontrou um passarinho, mas está ferido. Mostre a ela, Daniel, vamos!

Daniel abriu a mão e mostrou o passarinho, mas ele não se mexia. Na ânsia de salvá-lo, ele apertara demais a mão e o bichinho sufocara. Ao ver o seu corpinho sem vida, Daniel desatou a chorar, sentindo-se culpado pela sua morte.

– Foi minha culpa! – repetia desolado. – Eu o matei!

– Não diga isso, meu filho – consolava minha mãe. – Não foi culpa sua. Sei que foi sem querer.

– Foi sim! Foi sim! Eu o matei e agora vou ter que pagar por isso. Deus vai me castigar!

– Meu filho, Deus não castiga ninguém. Foi um acidente, você não fez de propósito.

– É, Daniel – intervim eu. – Pois se foi você mesmo quem tentou primeiro salvar o bichinho…

A muito custo conseguimos consolá-lo. Daniel era um menino extremamente sensível e impressionável, e passou o resto do dia a lamentar a perda daquela rolinha. Quando meu pai chegou, minha mãe contou-lhe o ocorrido, mas ele não deu muita importância. Ao contrário, repreendeu Daniel duramente, e ainda hoje me lembro de suas palavras:

– Pare com essa bobagem, Daniel. Até parece um mariquinhas. Homem que é homem não chora!

Daniel viu-se obrigado a engolir o choro. Tinha medo de papai e não queria levar umas palmadas. Embora papai não costumasse nos bater, por vezes nos aplicava uma palmada ou outra, o que, por si só, já era bastante doloroso. Mas apanhar mesmo, nós nunca havíamos apanhado, até o dia em que o mundo desabou sobre nós.

Quando a noite chegou, fomos dormir, e Daniel estava ainda muito abalado. Por volta da meia noite, a casa toda escura, ouvi passos perto de minha cama e me assustei. Daniel estava lá, parado e chorando.

– O que você quer? – perguntei.

– Não consigo dormir.

– Quer deitar aqui comigo?

Ele fez que sim com a cabeça e eu cheguei para o lado, dando espaço para que ele se deitasse. Ele se deitou perto de mim e me abraçou, pousando a cabeça em meu peito. Em breve adormeceu, e quem não pôde mais dormir fui eu. Por alguma estranha razão, a presença de Daniel ali a meu lado me perturbava. Eu podia sentir o seu corpo pressionando o meu, e aquilo foi me enchendo de desejo. Apavorada, eu fechei os olhos e rezei, pedindo a Deus que afastasse aqueles pensamentos impuros da minha cabeça. Daniel era meu irmão, e aquilo não estava direito. Com o conforto da prece, o sono chegou e eu adormeci, somente despertando na manhã seguinte, segunda-feira, com minha mãe chamando:

– Daniela, acorde. Já é hora de ir para a escola.

– Hum… – fiz eu, ainda sonolenta.

– Vamos, levante-se.

Eu abri os olhos e procurei meu irmão. Ele não estava mais ali.

– Onde está Daniel? – indaguei.

– Acordou cedo e já se vestiu.

Em silêncio, eu me levantei e fui saindo em direção ao banheiro. Já na porta, minha mãe segurou-me o braço e falou meio sem jeito:

– Daniela, minha filha, quantas vezes tenho que lhe dizer para não dormir agarrada com seu irmão?

– Mas mãe – indignei-me –, que mal pode haver, se somos apenas irmãos?

– Mal não há. Mas não fica bem.

– Ora, mãe, que tolice. Você bem sabe que Daniel e eu sempre fomos muito unidos.

– Mas você agora já está uma mocinha, e Daniel já é quase um homem. E depois, você sabe que seu pai também não aprova.

– Eu sei, eu sei. Mas Daniel estava triste por causa do passarinho. Mamãe, você se preocupa à toa. Somos irmãos, e não tem nada demais em dormirmos juntos.

Ela não respondeu e saiu. Minha mãe sempre fora uma mulher bastante sensata e intuitiva, e creio que ali, naquele momento, pôde vislumbrar todo o drama que em breve se abateria sobre nós. Em seu íntimo, ela devia se lembrar de tudo o que já acontecera em outras vidas e sabia por que havíamos nascido irmãos, assim como deveria estar consciente de sua árdua missão de mãe.

Já à mesa do café, meu pai virou-se para minha mãe e falou:

– Eugênia, quantas vezes já lhe disse que não quero Daniel e Daniela dormindo na mesma cama?

Minha mãe olhou para mim, depois para Daniel, e abaixou a cabeça, tentando se desculpar:

– Ora, Gilberto, não foi nada. O menino ficou impressionado com a morte do pássaro, e Daniela só quis ajudar.

– Mesmo assim, não quero. Não fica bem. Daniela já é uma moça e tem seu próprio quarto. E Daniel também já é um homem e não deve se impressionar com essas tolices.

Eu olhei para meu irmão pelo canto do olho, mas ele nem se atreveu a levantar a cabeça. Depois do café, saímos e fomos esperar o transporte escolar na estradinha. Íamos em silêncio, com medo até de pensar.

Quando chegamos à escola, fomos para a sala de aula sem dizer nada. Como tínhamos a mesma idade e a escola era pequena, estudávamos na mesma classe. Entramos cabisbaixos e nos dirigimos para nossas carteiras. A minha ficava duas atrás da de Daniel, e a seu lado sentava-se uma garota magrinha, de nome Rita, de quem eu não gostava muito.

Rita vivia a insinuar-se para meu irmão, mas ele não lhe dava a menor importância. Naquele dia, porém, talvez em razão da bronca de papai, Daniel resolveu prestar-lhe um pouco mais de atenção, e ela derreteu-se toda para ele. Na hora do recreio, Daniel e Rita desapareceram, e eu saí atrás deles, louca da vida. Fui encontrá-los atrás do muro do pátio, e eles estavam se beijando. Horrorizada, não pude esconder a indignação e gritei:

– Daniel!

Ele soltou a menina e se virou para mim. Estava confuso, envergonhado. Eu, mais que depressa, pus-me a correr de volta para a sala de aula e não falei mais nada. Quando a sineta tocou, anunciando o término das aulas, levantei-me acabrunhada e saí para tomar a condução de volta, sem dar uma palavra sequer.

Em casa, depois do almoço, fui para o quintal, Daniel atrás de mim tentando puxar conversa:

– Ora vamos, Daniela, o que foi que houve? Por que está tão brava?

Eu não sabia o que dizer. Na verdade, não deveria estar zangada, mas o fato era que estava. Pior: eu estava morrendo de ciúmes.

– Pare com isso, Daniela, e deixe de besteiras. A Rita é apenas uma menina, não significa nada para mim.

Eu parei e me virei para ele, fitando-o com o olhar carregado de angústia:

– Mas você a beijou – desabafei por fim. – E na boca! Eu vi.

– E daí?

– Como pôde me trair?

Ele já ia responder, mas eu não lhe dei tempo. Segurando-lhe a cabeça, beijei-o apaixonadamente, e ele afastou-se de mim com um safanão.

– Ficou louca, Daniela? Somos irmãos!

Eu me atirei ao chão e comecei a chorar copiosamente.

– Eu sei, eu sei. Mas não pude evitar. Oh! Daniel, perdoe-me. Eu o amo e o desejo, e já não posso mais lutar contra esse sentimento. Sei que é errado, é pecado, mas não paro de pensar em você, em sua boca, em seu corpo…

Daniel ajoelhou-se a meu lado e me acompanhou no pranto. Como podia condenar-me, se ele também lutava contra aquele sentimento? Assim como eu, ele também me amava e me desejava, e só beijara a Rita porque não podia me beijar. Sua própria irmã.
Ele abraçou-se a mim e procurou a minha boca, beijando-me com sofreguidão. Eu me assustei. Não esperava que meu irmão me correspondesse, mas deixei-me ficar, perdida em seus beijos. Depois, começamos a nos acariciar e logo estávamos nos amando.

Depois desse dia, não pudemos mais nos separar. Aonde um ia, lá ia o outro atrás. Estávamos sempre juntos, de mãos dadas ou abraçados, e não saíamos com mais ninguém. Evitávamos as rodinhas de amigos, não tínhamos namorados. Rita ficou esquecida, Daniel nem olhava mais para ela. A paixão entre nós crescia vertiginosamente. Era um amor selvagem e carregado de culpa, mas nós não podíamos mais deixar de nos amar.

Em casa, nossos pais começaram a notar a diferença em nosso comportamento. Eu já estava uma mocinha, e era natural que os rapazes telefonassem à minha procura. Mas eu, sempre que podia, esquivava-me de falar com eles ou inventava uma desculpa para recusar convites para ir a festas e ao cinema. Daniel, por sua vez, também não ligava importância às garotas e vivia trancado dentro de casa, sempre em minha companhia.

Mamãe e papai estavam seriamente preocupados. Mamãe, sem saber por quê, tinha um estranho pressentimento, embora não pudesse sequer conceber a dura realidade. Papai, bastante desconfiado, também recusava-se a crer que seus filhos pudessem estar cometendo o mais abominável dos pecados, cujo nome tinha até medo de pronunciar: incesto.

Mas a verdade era uma só. Nós estávamos vivendo um amor intenso e incestuoso e, apesar da culpa que nos roía, não podíamos mais nos separar. Nada nem ninguém nos importava, só o nosso amor.

Até que um dia, o pior aconteceu. Nós havíamos chegado da escola e, como sempre, almoçamos e partirmos para o quintal, para nos encontrarmos sob a sombra de nossa figueira preferida, lá embaixo, perto do laguinho. Era um local escondido, e ninguém, a não ser nós, ia até lá. Mas naquele dia, mamãe resolveu nos seguir. Talvez já não estivesse mais agüentando aquela suspeita. Em silêncio, ela foi atrás de nós e parou quando nós paramos. Logo começamos nosso ritual de amor, nos beijando e acariciando, até que nos amamos como dois animais. Mamãe ficou chocada, tão chocada que não conseguiu falar. Em silêncio, voltou para casa e telefonou para papai, pedindo-lhe que viesse com urgência. Meu pai, que de nada sabia, retornou na mesma hora e logo foi colocado a par do que acontecera.

Quando voltamos de nosso passeio, estavam ambos sentados na sala, esperando por nós. Logo que entramos, a voz de papai se fez ouvir, forte como um trovão:

– Daniel e Daniela, venham até aqui imediatamente!

Nós nos olhamos alarmados. O que estaria fazendo papai ali àquelas horas? Ao entrarmos na sala e vermos as fisionomias graves de nossos pais, já sabíamos que eles haviam descoberto toda a verdade.

– Muito bem – prosseguiu ele –, quero saber o que está acontecendo nesta casa! Será que perderam a vergonha, o pudor?

Não adiantava fingir, nos fazermos de desentendidos. Eles não eram tolos, e tentar enganá-los só serviria para aumentar ainda mais a fúria de meu pai.

– Pai, deixe-me explicar – arrisquei.

– Cale-se, sua ordinária, cadela!

Levantou a mão, acertando-me em cheio no rosto. No mesmo instante, eu titubeei e caí, sentindo uma dor horrível na face, na boca um gosto amargo de sangue. Tentei me levantar, mas ele correu para mim e tirou o cinto, desferindo diversos golpes nas minhas costas. Eu comecei a chorar e a gritar, mas ele não parava. Minha mãe, assustada, tentou intervir, mas ele a repeliu com um empurrão, e ela tombou no sofá, amparada por meu irmão.

– Papai, por favor – suplicou Daniel –, vai matar Daniela.

Subitamente, ele me soltou e virou-se para ele, os olhos injetados de sangue.

– Venha cá, moleque, que lhe darei uma lição.

Partiu para cima dele, acertando-o em diversos lugares diferentes. Eu estava exaurida, não tinha mais forças para reagir, e minha mãe deixou-se ficar prostrada sobre o sofá. Até que, de repente, ele parou, ajoelhou-se no chão e desatou a chorar. Foi engraçado ver meu pai ali, vencido, chorando feito uma criança desamparada. Minha mãe levantou-se e acercou-se dele, abraçando-o com ternura. Ela ergueu a cabeça e me encarou, e havia tanta dor naquele olhar, que eu senti uma forte pontada no coração.

– Por quê? – indagou sentida. – Por quê? Não fizemos tudo por vocês? Por que foram nos trair assim dessa maneira?

– Mãe…

– Não, não. Deixe-me terminar. Vocês são reles e não merecem o nosso amor. Vocês traíram a nossa confiança, abusaram de nosso amor. Como puderam ser tão sórdidos?

– Mãe, por favor, posso explicar.

– Não, Daniela, não há explicação para o que vocês fizeram. Vocês são irmãos, têm o mesmo sangue, nasceram no mesmo dia e, no entanto, se deitam no meio do mato como dois animais. É isso mesmo o que são: animais. Porque só os animais copulam com seus irmãos e irmãs.

– É isso mesmo – concordou papai. – Vocês não são dignos de nosso amor e nosso respeito e, de hoje em diante, não os quero mais em minha casa. Aprontem suas trouxas e ponham-se daqui para fora!

– Mas pai – chorava Daniel –, você não pode. Aonde iremos? Somos menores e…

– Isso não me interessa. Deveriam ter pensado nisso antes. E depois, podem ainda ser menores mas, com certeza, já não são mais crianças. Eu bem que desconfiava, andando juntos, agarradinhos. Como fui burro!

– Não se torture, Gilberto, a culpa não foi sua. No entanto, Daniel tem razão. Você não pode mandá-los embora.

– Não posso? Pois já os mandei.

– Mas eles são nossos filhos. Devemos ajudá-los.

– Ajudá-los como, se são dois sem-vergonhas?

– Ainda assim, devemos ajudá-los. Eles devem estar doentes da cabeça, e podemos procurar ajuda psiquiátrica. Um bom médico há de curá-los.

– Mamãe, por favor – objetei –, não estamos doentes nem somos loucos. Apenas nos amamos.

– Cale essa boca! – berrou papai, esbofeteando-me novamente. – E não ouse repetir tamanha infâmia na nossa frente. Vocês são irmãos, e isso o que chama de amor é expressamente proibido para vocês.

– Ah, é? E por quem?

– Por Deus e pela Justiça. O que vocês fizeram foi abominável e não merece perdão.

Meu pai estava rubro de ódio, e pensei que ele fosse enfartar naquele momento. Minha mãe também deve ter pensado a mesma coisa, porque ainda tentou contemporizar:

– Gilberto, acalme-se…

– No entanto – prosseguiu ele, quase rugindo –, não vou mandá-los embora, apenas porque é sua mãe quem está pedindo. Mas é condição para que fiquem que consultem um psiquiatra. E não os quero mais juntos. Estão proibidos de se encontrarem sozinhos.

– Pai, não pode fazer isso! – protestei. – Você não tem o direito de nos separar.

– Basta, Daniela! Cale-se ou serei capaz de cometer uma loucura!

Achei melhor calar-me. Não adiantava mesmo discutir. Meu irmão estava apavorado e não ousava contrariar as ordens de papai, e tivemos que obedecer. Fomos bruscamente separados e, dali a três dias, estávamos freqüentando as sessões de um psiquiatra que nos olhava como se fôssemos uma aberração. Nós o detestávamos, mas tínhamos que ir, um de cada vez.

Em nossa casa, papai redobrou a vigilância sobre nós. Ele mesmo nos levava à escola e nos buscava, e deu ordens expressas à professora para que não nos deixasse sair mais cedo nem no meio da aula sem a sua autorização. Embora ele não tivesse declinado o motivo daquela proibição, a professora também não perguntou nada e fez como ele pediu. Ela nem de longe desconfiava do que se tratava, mas era assunto de família, e ela não tinha nada com isso.

Os outros alunos ficaram intrigados e não tardaram a criar uma história, na qual todos passaram a acreditar, e logo se espalhou a fofoca de que Daniel e eu deveríamos estar envolvidos com drogas. Aquilo foi extremamente duro para nós, porque todos os jovens, alertados por seus pais, passaram a nos evitar e mal falavam conosco. De repente, nós nos tornáramos delinquentes e não éramos mais companhia para os jovens de boa família.

Até que mamãe soube do que estava acontecendo e foi até a escola desfazer o mal entendido, justificando a proibição de papai com a alegação de que estávamos pegando a mania de fumar escondidos no banheiro, o que não era assim tão ruim. O mal entendido se desfez, porque a maioria dos jovens fumava também, e tudo voltou ao normal, embora a proibição continuasse.

Quando voltávamos para casa, almoçávamos, e Daniel tinha que subir para o seu quarto, enquanto eu acompanhava mamãe aonde quer que ela fosse. À noite, mamãe dormia em meu quarto, e eu só podia sair para ir ao banheiro ou beber água e, assim mesmo, em sua companhia.

Durante as primeiras semanas, até que funcionou. Mas depois, a ausência de Daniel começou a deixar-me louca. Eu não podia viver sem ele, e fazer sexo com ele, mais do que uma necessidade, era uma questão de sobrevivência.

Até que, numa noite em que mamãe dormia profundamente, eu me levantei e saí na ponta dos pés, seguindo direto para o quarto de Daniel. Experimentei a porta. Não ficava trancada, para que ele pudesse ir ao banheiro se precisasse. Papai recusava-se a dormir com ele, e só eu era constantemente vigiada por mamãe. Desde que estivesse com ela, não podia estar com Daniel.

Em silêncio, aproximei-me da cama de meu irmão, que dormia um sono agitado, e deitei-me ao seu lado. Ele abriu os olhos assustado, e eu colei minha boca à sua. Imediatamente, ele me abraçou e começou a me despir, enquanto murmurava baixinho:

– Oh! Daniela, que bom que veio! Já não podia mais suportar…

– Mas o que é que está acontecendo aqui? – era mamãe, que acendia a luz, ao mesmo tempo em que saía porta afora para chamar papai.

Eu me desvencilhei de meu irmão e corri atrás dela, implorando-lhe que não fizesse aquilo. Mas ela não me dava ouvidos e continuou a avançar para o quarto de papai. Apavorada, eu tentei segurá-la pela camisola, mas ela lutou comigo, até que se desequilibrou e caiu escada abaixo, rolando os degraus até chegar lá embaixo, o pescoço quebrado, já sem vida.

Ouvindo aquela confusão, papai correu para ver o que estava acontecendo. Ao se deparar com mamãe morta, estirada no pé da escada, desceu correndo e começou a chorar feito louco. Eu, penalizada, acerquei-me dele e falei com pesar:

– Pai, sinto muito… foi um acidente.

Ele me olhou sem nada entender e vociferou:

– Saia daqui! Deixe-me a sós com minha Eugênia!

Vendo que nada podia fazer, fui para a sala e peguei o telefone, para chamar um médico, que constatou o óbito. Como ninguém sabia de nosso drama, a morte de mamãe foi dada como acidente, e sequer houve inquérito. Mas papai passou a desconfiar de mim, pensando que eu a havia empurrado, e não pôde acreditar quando lhe disse que tudo não passara de uma fatalidade e que eu também estava sofrendo muito com a perda de mamãe.

Desse dia em diante, papai perdeu o interesse em nos ajudar e nunca mais nos obrigou a voltar ao psiquiatra. Passamos a conviver debaixo do mesmo teto, mas não de forma pacífica. Embora não nos tivesse expulsado, ele começou a nos maltratar e humilhar e, por vezes, a nos ignorar, mas sempre nos atirando na face o pecado que cometêramos. Mas não nos expulsava, e nós fomos ficando, acostumados àquela vida desregrada e desarmoniosa que se estabeleceu em nosso lar.

Virando o Jogo











Cada um determina seu destino, que, a todo instante, pode ser modificado.

A maior causa de queda do homem reside na ilusão do poder. Os que pensam que podem tudo, na realidade, nada podem, porque o verdadeiro poder pertence a Deus e àqueles que, por já terem trilhado muitas estradas na Terra, chegaram a tal estágio de amor que conquistaram o grau de espíritos iluminados. Os mistérios da reencarnação somente a estes pertencem, inexistindo inteligência suprema que ultrapasse as barreiras do conhecimento divino, porque esse conhecimento é a essência do amor.

Seres inteligentes, que habitam o submundo astral, esforçam-se para disseminar seu poder sobre a Terra, gerando a alegoria dos demônios que espalham o medo para vencer as falanges do bem. Eles nada mais são do que espíritos ainda empedernidos, apegados às ilusões da matéria que já não possuem, e que lutam, desesperadamente, para manter íntegra a hierarquia de terror e violência que estabelecem no astral inferior. Mas não existe poder capaz de suplantar as forças do bem, porque o bem é da natureza divina e nada pode se contrapor a ele.

Pouco a pouco, essas verdades irão se desvendando aos olhos de Régis, cuja índole rebelde e imatura não permite perceber a realidade de sua vida e dos sentimentos que o rodeiam. O confronto com a pureza do amor irá conduzi-lo em uma jornada de redescoberta de si mesmo e reavaliação de seus valores, levando-o a questionar onde, realmente, se encontra o poder.


Capítulo 1



Parecia que muitos anos haviam se passado desde a primeira vez em que trafegara por aquelas ruas. Passagens obscuras, vielas mal cheirosas, becos assustadores projetavam sombras indistinguíveis nas paredes nuas. O lugar era horrível. Já nem se lembrava mais de como fora parar naquele submundo. Ali era seu lar.



Mizael caminhava de cabeça baixa, pensando na vida que levara até então. Tudo o que fizera fora cometer crimes: roubar, matar, estuprar. Não sabia fazer outra coisa. Por mais que compreendesse que era errado, todo o seu corpo vibrava quando sentia escorrer nas mãos o sangue dos inocentes. Era algo que o enchia de prazer, era o alento que lhe dava ânimo. Pena que, algumas vezes, reconhecia, na intimidade do ser, uma insinuação de cansaço.



Ouviu um ruído estrondoso e olhou para o céu, sem conseguir vê-lo. Havia tantas nuvens pesadas que só o que pôde distinguir foi uma massa disforme de vapor gris. Em algum lugar por detrás daquele teto de chumbo, provavelmente, o sol devia brilhar.



Apressou o passo. Queria chegar logo à casa de Atílio. A reunião fora marcada às pressas, ele não sabia do que se tratava. Intuía que era algo importante, do contrário, Atílio não teria mandado o maltrapilho do Damien à sua casa com tanta pressa.

Quando ele chegou, logo notou uma movimentação nervosa. Todos entravam e saíam atarantados, vestindo uniformes negros, carregando armas pesadas. Era comum, em grandes operações, aquele alvoroço no bando. A quadrilha de Atílio era muito competente no que fazia. Bandidos e assassinos, todos tinham uma missão a cumprir. Poucos eram os que falhavam, e Mizael nem gostava de pensar no que acontecia aos que não cumpriam bem suas tarefas.



– Até que enfim! – exclamou Damien, logo que o viu entrar. – Mais um pouco e Atílio mandaria buscá-lo pelos cabelos.

– Não enche, feioso – rebateu Mizael, irritado.

Damien apertou os punhos, doido de vontade de acertar um murro na cara de Mizael. Mas não podia. Ele era intocável, o preferido do chefe. Pessoa da mais alta confiança, tinha praticamente todos os poderes que Atílio atribuíra a si mesmo.

– Você pensa que tem o rei na barriga, não é? – falou Damien com raiva. – Só porque é o queridinho do chefão acha que é melhor do que todo mundo?

– Por que não dá o fora, palhaço? Ou prefere que eu lhe dê uma lição?

– Um dia, isso vai mudar. Atílio ainda há de ver quem você é.

– Quem eu sou não lhe diz respeito. Você tem apenas que obedecer. A Atílio e a mim.

– Você pode enganar Atílio e os outros, mas a mim não engana. Conheço tipos como você.

– Devo sentir medo de você? – desdenhou. – Ponha-se no seu lugar, verme, ou sou capaz de esmagá-lo com meus punhos. Saia da minha frente, asqueroso. Ande! Chispe!

Engolindo a raiva, Damien se afastou. Até a chegada de Mizael, ele e Atílio eram como irmãos. Fizeram muitas ações juntos, envolvendo-se em roubos, assassinatos e muito mais. Não havia quem não os temesse. Foram anos dedicados ao crime, sempre escapando da polícia, ludibriando a justiça. Mas o cerco foi apertando, até o dia em que não lhes restou alternativa a não ser fugir e se refugiar ali. O local não era dos mais agradáveis. Era sujo, feio, fedorento, mas pelo menos ficava fora do alcance de vigilantes e soldados.

De repente, Mizael apareceu. Ele não fazia parte do bando original, mas conquistou a confiança de Atílio tão logo chegou. Tinha um jeito arrogante, frio, audacioso. Muito diferente dele, que, apesar de corajoso, era também servil. Mizael, não. Obedecia sem se mostrar subserviente.

Mizael não se juntou ao bando de imediato. Atílio já o conhecia, seus feitos no mundo do crime eram famosos. Mandou chamá-lo à sua presença, ofereceu-lhe um lugar na quadrilha. Mizael não só recusou, como também o desafiou. Queria tomar seu posto de poder. Atílio deu ordens para que ninguém os interrompesse e trancou-se com ele em seu gabinete. Horas depois, quando saíram, já não havia mais animosidade entre eles. Pareciam velhos conhecidos.

Aos poucos, Mizael foi subindo na hierarquia do bando, impressionando o chefe com suas façanhas inteligentes, audazes, intrépidas. Mizael não tinha medo de nada. Nunca tivera nem medo de morrer.

Com a projeção de Mizael, Damien começou a decair. Era bom para executar planos, contudo, não sabia planejá-los. Mizael, por sua vez, era excelente estrategista. Seus planos sempre surtiam efeito. Tanto que Atílio passou a confiar mais nele do que em qualquer outro. Dizia que Mizael o havia conquistado pela inteligência.

Havia algo mais naquela amizade. Damien sabia, sentia uma energia diferente fluindo entre eles. Uma camaradagem além do normal, uma simpatia tão forte que levava Atílio a defender Mizael em qualquer situação, justificando cada um dos raros erros que cometia.

Essas lembranças só faziam aumentar o ódio de Damien por Mizael. Relegado a segundo plano, Damien foi obrigado a aceitar se transformar no capacho de Atílio e do próprio Mizael. Por tudo isso, tinha motivos mais do que suficientes para odiá-lo e não acreditar nele.

De longe, Damien observava cada passo de Mizael, mordendo os lábios para conter a fúria. Mizael entrou calmamente na sala de Atílio, passando no meio dos comparsas que bajulavam o chefe. Muitos o olharam com antipatia, outros com medo.

– Mandou me chamar? – indagou ele, aproximando-se de Atílio.

Atílio estudava um documento e levantou os olhos quando ouviu sua voz. O sorriso que lhe deu poderia parecer gutural a quem não o conhecesse, mas Mizael sabia que aquele era um gesto cortês.

– Sente-se – ordenou Atílio. – Tenho algo muito importante a lhe dizer.

Sem nem desconfiar do que se tratava, Mizael sentou-se defronte dele. A um olhar de Atílio, todos foram embora. Quando o último comparsa fechou a porta, Atílio encarou Mizael e começou a falar:

– Temos estado juntos por muitos anos, não é mesmo?

– Sim.

– Durante todo esse tempo, sei o quanto você me foi leal.

– É verdade.

– Tão leal que é o único em quem confio para executar a missão que tenho em mente.

– Missão? – interessou-se. – Do que se trata?

– É uma missão especial e muito perigosa. Não sei se você vai gostar.

– Por que não?

– Você terá que nos deixar por uns tempos.

– Deixar vocês? – surpreendeu-se. – Não compreendo.

– Você já deve ter notado que o mundo está mudando. E creio que, daqui para a frente, as mudanças serão ainda maiores. A situação no oriente médio anda complicada. A coisa lá está preta.

– E daí? O que temos com isso? Não vá me dizer que quer se juntar ao Saddam Hussein!

– Deixe de besteiras, Mizael! Não é nada disso, por óbvio. Mas você tem que convir que ele é uma inspiração.

– Inspiração para quê? Por acaso vamos virar terroristas?

– É claro que não. Quero apenas que você perceba que, em todas as partes do mundo, há gente interessada na solidificação do poder. Como nós. Temos que conquistar nosso lugar no mundo através da força.

– Tudo bem. Mas como?

– Aí é que você vai entrar. O momento é propício a novas e ousadas ações.

– Que tipo de ações?

– Ações inesperadas, que surpreendam o inimigo em sua mais pura inocência.

– Por acaso você está planejando alguma guerra? – espantou-se. – Ficou maluco? Há muitos soldados por aí, bem armados e dispostos a tudo para nos deter.

– E daí, Mizael? Desde quando isso foi problema para nós? Mas não se preocupe. Não é a uma luta armada que estou me referindo.

– Continuo sem entender.

– Você, que é tão inteligente, não conseguiu ainda descobrir?

– Sou inteligente, mas não sou adivinho. Não vejo o que mais podemos fazer além do que já fazemos. Como disse, só nos falta uma associação com o terrorismo.

– Terrorismo é coisa lá para os Estados Unidos. Não funciona no Brasil. E depois, não seguimos ideologia alguma. Não, Mizael, não quero nada com esses fanáticos. Refiro-me é a uma infiltração.

– Mas nós já fazemos isso! Quantos de nós têm influência até sobre políticos e juízes?

– Não é desse tipo de infiltração que estou falando. Já foi o tempo em que só uma ação silenciosa surtia resultados. Precisamos de uma investida mais efetiva. Uma guerra está sendo preparada para o futuro e não podemos ficar de fora.

– Essa guerra a que você se refere não é uma luta armada, certo? – ele assentiu. – Se não vamos vencer o inimigo pela força, então, só pode ser pela inteligência. É isso?

– Mais ou menos. Precisamos nos expandir para além desses horizontes, ter uma atuação mais efetiva

.– Muito bem. O que quer que eu faça?

– Vai me obedecer sem questionar?

Uma imperceptível hesitação trespassou o coração de Mizael, mas ele manteve a postura firme e afirmou categoricamente:

– Você sabe que sim. Seja qual for a missão que tenho que desempenhar, estarei pronto para ela.

– Excelente! Não esperava outra coisa de você.

– E então? Vai ou não me dizer do que se trata?

Atílio fixou neles os olhos naturalmente ofuscados pela ira e disparou sem rodeios:

– Você vai reencarnar.

Jurema das Matas



A visão estreita do mundo ainda faz com que os olhos do homem permaneçam fechados, mesmo quando a luz da verdade desponta diante dele, quase a ofuscar-lhe a mente nebulosa.

Pouco se sabe a respeito das entidades que se dispõem a trabalhar nos círculos espirituais da Umbanda. Muitas histórias são ouvidas, algumas envoltas em mistérios e superstição. O preconceito e a ignorância ainda pairam sobre esses seres, em sua maioria abnegados instrutores dotados de inteligência extrema e imensurável amor pela humanidade.

Jurema das Matas é assim. Com inigualável simplicidade e franqueza, desvenda quatro de suas encarnações, na tentativa de mostrar como o ser humano se ilude com falsos valores de conquista e poder. Da trajetória sangrenta e sofrida, surge uma criatura dócil e infinitamente sábia, disposta a compensar seus desequilíbrios com o auxílio desinteressado aos irmãos de caminhada que formam a família humana.

É uma lição para todos nós, acostumados a eleger favoritos em função da vestimenta sutil com que se apresentam no mundo da matéria. A escolha do espírito que anima esta história foi a da humildade para, através do exemplo, reafirmar em nós a crença de que somos e seremos sempre iguais.

Capítulo 1

Chovia torrencialmente quando Alejandro Velásquez deixou a taverna, ainda sentindo na mente os efeitos estonteantes do rum e da mulher que o inebriara na cama. Foi caminhando, cambaleante, tentando se recordar do local em que havia deixado o cavalo. Como a memória lhe falhava, sacudiu os ombros e cuspiu no chão, tomando o caminho da rua à direita, e seguiu chutando as poças e espargindo água por todo lado.

Era madrugada, e não havia ninguém na rua. Um cão encharcado se aproximou, e Alejandro lhe teria dado um pontapé, não fosse o bichinho mais rápido e fugisse assustado, alertado pelo instinto de que não estava diante de uma pessoa amiga.

– Idiota – rosnou ele, tentando se equilibrar e seguir avante.

Quando chegou à casa, o dia estava prestes a raiar, e ele abriu a porta com estrondo, atirando-se na primeira poltrona que viu pela frente. Ali mesmo adormeceu, até que foi despertado algumas horas depois pelo murmurinho da criada, ocupada em limpar a sala enquanto cantarolava uma cantiga da moda.

– Pare com esse barulho infernal! – esbravejou ele, assustando a moça, que deixou cair a bandeja de prata que segurava nas mãos.

– Senhor! – redarguiu ela, cabeça baixa e voz humilde. – Não sabia que estava aí.

Ele não respondeu. Levantou-se, coçando o queixo, e passou por ela sonolento, não sem antes lhe beliscar as nádegas e dar uma gargalhada irônica. Apesar da contrariedade, a moça nada fez e se encolheu para lhe dar passagem.

– Onde está minha mulher? – perguntou ele, ainda sustentando no canto da boca aquele sorriso maroto.

– Está dormindo.

Alejandro não disse nada e saiu. No quarto, a esposa dormia placidamente, e ele parou para fitá-la por uns instantes. Era linda e lhe pertencia, por mais que ela não gostasse disso. Com gestos bruscos e desajeitados, sentou-se na cama ao lado dela e alisou os seus cabelos. Rosa abriu os olhos contrariada e fixou-os no marido, esforçando-se para conter o repúdio e não o mandar embora.

– Não o vi chegar – foi o que conseguiu dizer em sua mal disfarçada repulsa.

– Não quis acordá-la, minha querida. Você dormia feito um anjo dos céus.

Rosa sabia que era mentira, que ele havia passado a noite fora na companhia de mulheres de reputação duvidosa e da bebida farta, porém, não disse nada. Tinha vontade de xingá-lo e depois fugir correndo dali, mas não podia. O pai a forçara àquele casamento sem amor em troca de um nome que lhe salvasse a honra.

Parecia que fora há muito tempo que se apaixonara por um artesão de sapatos, dono de uma oficina próxima à casa em que viviam, ainda na Espanha. De uma hora para outra, Rosa dera para fazer constantes visitas ao artesão, encomendando-lhe mais sapatos do que tinha ocasiões para usar. O pai, desconfiado, acompanhou-a em uma dessas visitas e logo percebeu um brilho diferente na troca de olhares entre os dois. Até então, julgava tratar-se de uma paixão inocente e platônica, mas, ainda assim, proibiu a filha de ver o rapaz.

Auxiliada por uma criada, Rosa passou a receber o moço em seu quarto todas as noites. O pai, a princípio, julgou que a obediente Rosa houvesse se esquecido do artesão. Contudo, com o passar dos dias, notou que ela vivia com o olhar sonhador, sorrindo sem motivo e prestando pouca atenção aos jovens que a cortejavam.

Foi quando o pai descobriu tudo. Furioso, teria matado o rapaz, mas este, mais rápido, fugiu espavorido pela sacada e nunca mais foi visto. A tristeza de Rosa só não foi maior do que o desgosto do pai, que viu, de uma hora para outra, sua reputação esvair-se nos lençóis manchados do pecado da filha. Ele já estava decidido a mandá-la para um convento quando conheceu Alejandro.

Acontecera na taverna de sempre. Alejandro, abraçado à Giselle, a proprietária, sua amiga e, por vezes, amante, falava com os companheiros sobre um lugar chamado Castilla de Oro , colônia da Espanha nas recém-descobertas terras de além-mar, para onde pretendia ir assim que surgisse uma oportunidade. A novidade chamou a atenção do pai de Rosa e, em poucos minutos, estava negociado o casamento da moça. Alejandro lhe daria um nome em troca de dinheiro para a viagem e as primeiras despesas.

Na véspera do casamento marcado às pressas, Alejandro repartia com Giselle a excitação que o dominava ante a perspectiva da viagem.

– Acho que o que você está fazendo é uma loucura! Deixar o mundo civilizado por uma terra de selvagens? Francamente!

– É lá que está o ouro, Giselle. Vou voltar rico!

– Conversa! Aposto como não tem nada lá além de mato e mosquitos. Sem falar nos índios que comem gente. Você vai se arrepender.

Ele se movimentou na cama e a abraçou:

– Por que não vem comigo? Podia ser minha amante.

– Deus me livre! Já tenho amantes suficientes aqui mesmo na Espanha. E depois, não nasci para essa vida de aventuras. Além do mais – ela aproximou a boca dos lábios dele e sussurrou baixinho –, estou apaixonada. De verdade.

– Sei. Por aquele velhote?

– Aquele velhote tem sido muito bom para mim, mas não, não estou apaixonada por ele. Conheci um homem de verdade.

Alejandro suspirou e ficou olhando-a. Gostava de Giselle. Eles eram amigos de longa data e, por vezes, dividiam a mesma cama. Giselle, no entanto, não era mulher de se prender a ninguém e estava envolvida com gente importante.

– Você é quem sabe – lamentou ele. – Mas vou sentir a sua falta.

– Eu também – ela se desvencilhou dele e foi apanhar a taça de vinho. – No fundo, você é como eu, Alejandro: livre e ambicioso.

– Estamos ambos em busca de uma vida de luxos. Não estou certo?

– Exatamente – concordou ela, levantando a taça em um brinde solitário.

Ele soltou novo suspiro e acrescentou em tom nostálgico:

– Reluto em deixá-la, mas já é hora de partir. Caso-me amanhã e, no outro dia, parto com minha doce esposa para Castilla de Oro.

– Sua doce esposa já experimentou o fel da desgraça – desdenhou ela. – Não vai ser fácil manter sob as rédeas uma mulher assim.

– Olhe só quem fala! Até parece que você é alguma exemplo de doçura.

– É por isso mesmo que estou lhe avisando. Uma mulher conhece a outra. Sua Rosa é uma mulher experiente e apaixonada por outro homem. Aceitou esse casamento por imposição paterna. Ou você acredita mesmo que ela se apaixonou por você?

– Sei que não. Digamos que foi uma troca de interesses. Dinheiro por honra. É um preço justo.

– E a fidelidade? Faz parte do negócio?

– Você está certa de que ela vai me trair, não está?

– Ela não o ama e, na primeira oportunidade, vai cair nos braços de outro.

– Pois lhe garanto que isso não vai acontecer. Se Rosa é uma mulher fogosa, eu mesmo posso lhe oferecer o fogo de que necessita. E ela vai se dobrar a mim. Estarei sempre de olho nela.

– Bem, espero que se lembre do que lhe falei e não se surpreenda quando a encontrar na cama de outro.

– Lamento decepcioná-la, mas sei dobrar uma mulher. Rosa me será fiel, você vai ver.

– Infelizmente, meu caro, não verei. Você parte para o desconhecido, e eu terminarei meus dias aqui, no sossego de Sevilha.

– Escreverei para você e contarei o quanto Rosa é dedicada a mim. Só para deixá-la morta de inveja. Duvido que o seu padreco seja fiel a você.

– Ele não me interessa mais como homem. Já disse que estou apaixonada por outro, e sua fidelidade é inquestionável. É louco por mim.

– Será? Que homem é fiel se não está morto?

Ela atirou a taça em cima dele, errando o alvo, e riu gostosamente. Alejandro puxou-a para junto de si e beijou-a, deitando-se sobre ela na cama. Aquela seria a última vez que faria amor com Giselle e na Espanha. Pensar nisso causou-lhe um certo arrepio. Será que nunca mais tornaria a ver a amante nem sua terra natal?

E foi assim que Rosa se viu forçada àquele casamento arranjado às pressas, com um homem a quem repudiava e em companhia de quem foi enviada para o exílio. Em Castilla de Oro, a vida não transcorreu conforme o esperado. O sonho de riqueza se perdeu na ausência de ouro, e a vida permanecia estagnada na monotonia. Naquela terra estranha e sem muitas possibilidades, não havia ocupação para homens feito Alejandro, que acabou por obter permissão para se mudar para Cuba, junto com mais uma centena de espanhóis. Sem escolha, Rosa partiu com ele.

Tudo isso agora era passado. A vida em Cuba se revelara bem mais agitada, o que não serviu para diminuir a aversão de Rosa por Alejandro. Ele era um homem rude e mau educado, bebia em excesso e fazia sexo como um animal. Quase não lhe dirigia a palavra, a não ser para mandar e exigir obediência.

Assim, foi com a usual repugnância que Rosa o sentiu aproximar-se, espargindo sobre ela aquele hálito repulsivo de bebida e suor. Rosa puxou o lençol alvo sobre a camisola de linho e virou o rosto, enojada, enquanto Alejandro a puxava pelo queixo para um beijo. No auge da repugnância, avistou um pequenino pedaço de pergaminho sobre o aparador da lareira, dando graças aos céus pela salvação.

– Chegou uma mensagem para você – conseguiu articular.

– Que mensagem?

Com um aceno de cabeça, Rosa indicou o pergaminho, e Alejandro a soltou com um suspiro. Apanhou-o e rompeu o lacre. Desdobrou-o, e seus olhos foram percorrendo a escrita desenhada até chegar ao fim. Ele leu e releu a mensagem umas três vezes, e Rosa ficou olhando-o, ansiosa para que ele lhe dissesse do que se tratava.

– Alguma coisa importante? – perguntou ela, tentando aparentar gentileza.

– Um convite. Para uma viagem.

– Viagem? Para onde?

– Outras ilhas – Rosa levou a mão ao peito e conteve um suspiro. – A mando de Bernal Diaz de Castilho .

– Por quê?

– Parece que o governador acatou nosso pedido. Vamos partir em busca de índios.

Rosa não disse nada mas, em seu íntimo, exultava. Que Alejandro fosse mandado para longe era o que ela mais queria.

No dia seguinte, ele atendeu ao chamado de Bernal e ficou sabendo que uma expedição seria montada, sob o comando de Francisco Hernández de Córdova , a fim de capturar índios para o trabalho nas fazendas e na mineração. Seria a sua chance de adquirir escravos e estabelecer-se como fazendeiro.

No caminho de volta para casa, ouviu uma voz familiar atrás de si. Ao se voltar, avistou Lúcio, seu amigo desde o dia em que chegara a Cuba, e foi ao seu encontro.

– Lúcio, meu amigo! – alegrou-se. – Há quanto tempo!

Lúcio estendeu a mão para ele e a apertou sorrindo, ao mesmo tempo em que dizia:

– Soube que vocês conseguiram a expedição. Era o que você queria, não era?

– Há muito tempo. Já não aguento mais essa falta de ação e aventura. E vou precisar de escravos se quiser realmente me transformar em fazendeiro. O dinheiro que meu sogro envia é suficiente para comprar a fazenda mas, sem escravos, é quase impossível.

– É verdade. E não há muitos disponíveis, há?

– Quem tem não quer vender. Eu também não venderia.

– Quem vai liderar a expedição?

– Um fidalgo chamado Francisco Hernández de Córdova.

– Já ouvi falar. Dizem que é muito rico e possui um povoado de índios aqui mesmo, em Cuba.

– Pois é esse homem que será o nosso capitão.

– Espero que a missão seja bem sucedida. E que os índios não sejam selvagens.

– Não há selvageria que resista ao estrondo de um mosquete. Vamos domá-los, você vai ver.

– Pena que não poderei acompanhá-los. Tenho assuntos urgentes a tratar por aqui.

– É mesmo uma pena. Gostaria que pudéssemos ter uma aventura juntos.

– Oportunidades não hão de faltar, meu amigo.

– Já que vai ficar, poderia me prestar um grande favor?

– É claro! O que pedir.

Alejandro se aproximou ainda mais de Lúcio e falou baixinho:

– Você se lembra da história que lhe contei de Rosa, não lembra? – Lúcio assentiu. – Isso me deixa preocupado.

– Por quê?

– Rosa já era uma mulher experiente quando me casei com ela. Nunca se importou com reputação, ou honra, ou castidade.

– Você descobriu alguma coisa sobre ela? – horrorizou-se o amigo.

– Não é isso. Tenho certeza de que ela é fiel, mas porque eu estou aqui para satisfazê-la. Agora eu pergunto: o que fará uma mulher fogosa feito ela sem um marido para esquentar-lhe a cama?

– Você está exagerando. Rosa não me parece esse tipo de mulher.

– Ela nunca ficou sozinha. Sempre estive de olho nela. É melhor não facilitar.

– E você quer que eu tome conta dela?

– Na minha ausência, sim. Seria um grande favor, de amigo para amigo.

– Está certo – concordou Lúcio com um suspiro. – Acho desnecessário, mas, se você insiste…

– Eu insisto. Sei que é um pedido um tanto fora do comum, mas só posso confiar em você.

– Fique tranquilo. Rosa estará bem guardada.

– Obrigado, amigo. Ah! e não deixe que ela perceba ou, mais tarde, se voltará contra mim.

– Não se preocupe. Ela não perceberá que a estou vigiando.

A conversa estava quase terminada quando um homem se aproximou. Era jovem e musculoso, e cumprimentou Lúcio como se já o conhecesse de muito tempo.

– Quero apresentá-lo a meu sobrinho, recém-chegado da Espanha – falou Lúcio para Alejandro, segurando no ombro do rapaz. – Este é Soriano e vai viajar com você.

– Muito prazer, Soriano. E seja bem-vindo. Espero que possamos ser amigos.

– Bem, aí vai então uma troca de favores – tornou Lúcio. – Já que vou tomar conta de Rosa para você, será que se importaria de dar uma olhada em Soriano para mim? O rapaz é jovem e inexperiente.

Alejandro deu uma olhada em Soriano e revidou sorrindo:

– Com tantos músculos, talvez seja melhor ele tomar conta de mim.

– Nada me daria maior prazer, senhor – falou o rapaz, com voz servil.

– Soriano é forte, mas não tem experiência – explicou Lúcio. – E meu irmão não me perdoaria se algo lhe acontecesse. É seu único filho varão.

– Deixe-o por minha conta – garantiu Alejandro. – Prometo defendê-lo com a minha vida e sei que você defenderá, com a sua, a minha honra de marido.

– Considero um privilégio servir ao seu lado, senhor – acrescentou Soriano, em tom embevecido. – Ouvi muito a respeito de sua intrepidez e ousadia.

– Não conte comigo para sua ama-seca, rapaz. Estarei a seu lado para ajudá-lo a se transformar em homem. Sabe manejar uma espada?– Sei, senhor. Mas reconheço que ainda tenho muito que aprender.

– Ótimo. Com sorte, estaremos a bordo do mesmo navio e poderemos praticar um pouco.

– E depois, capturar muitos índios – finalizou Soriano, com ar arrebatado e sonhador.

Quando os três se despediram, havia um clima de forte expectativa no ar. Alejandro não estava acostumado a tomar conta de ninguém além de si mesmo, mas tinha que manter a palavra dada a Lúcio. Precisava que o amigo vigiasse Rosa, e o favor bem que valeria o sacrifício. Ademais, Soriano era um rapaz simpático, e poderia ser divertido tê-lo por companhia. Bastava esforçar-se para mantê-lo vivo, o que não deveria ser difícil, já que os índios que iam capturar deviam ser dóceis e amistosos.

De Frente com a Verdade


O papel que cabe à mulher na sociedade não a torna incapaz de exercer as suas próprias escolhas nem de dar vazão à inteligência e à liberdade de seguir o destino que eleger.

Quando Luciana se foi, Marcela pensou que era o fim de sua vida. O desequilíbrio a levou a adotar medidas extremas. Frustrado o suicídio, encontrou no médico que a salvou um nova razão para viver.

Temendo o preconceito, Marcela esconde do jovem namorado a avassaladora paixão do passado. A partir daí, intrinca-se numa rede de omissões e subterfúgios para tentar conter a verdade, vendo em Luciana a arma com que o inimigo tramará sua derrota.

O passado, contudo, não pode ser apagado, e as experiências nele vividas remanescem no repositório indelével da alma. Mais cedo ou mais tarde, o universo desvenda segredos e ilusões, porque a verdade é o estado natural de todas as coisas.

Presa ainda aos desenganos do mundo, Marcela não compreende a obra da natureza, que incessantemente trabalha para restabelecer o seu curso. Por mais que tente fugir ou se esconder, os rumos que a vida percorre chegam sempre ao mesmo ponto, onde ela se encontrará, inevitavelmente, de frente com a verdade.

Capítulo 1

O livro que Marcela acabara de ler jazia inerte a um canto, a página final aberta e manchada pela umidade de suas lágrimas. Era um livro de poesias, de João Cabral de Mello Neto, em que a personagem central questionava se não seria melhor saltar da ponte e da vida. Aquela idéia lhe pareceu romântica, e ela se pegou invejando a criatura que, de forma tão corajosa, decidia abandonar as decepções da vida. Por que não podia ela fazer a mesma coisa?

A passos vagarosos, aproximou-se do armário do banheiro e abriu a porta de espelho oxidado, fitando o seu interior com angústia. Remexeu nas prateleiras até que encontrou o que procurava: um vidro de comprimidos para dormir. Revirou-o na mão e fechou a porta, apertando o frasquinho contra o peito. Duas grossas lágrimas escorrerem de seu rosto, e ela suspirou amargurada. De que adiantaria viver? Sua vida havia terminado naquela noite, no exato momento em que Luciana lhe dissera que tudo estava terminado. E ela simplesmente achava que não podia viver sem Luciana.

Ainda se lembrava do dia em que abandonara a família e a cidade de Campos para segui-la. Luciana sempre fora uma menina esperta, travessa e extrovertida, muito segura de si e de suas escolhas. Quando, finalmente, descobriu sua verdadeira orientação sexual, entregou-se a ela sem muitos questionamentos, não dando importância aos comentários maldosos a seu respeito. Em 1966, numa cidade pequena feito Campos de Goytacazes, foi um escândalo sem precedentes. Quando o fato caiu no domínio público, a família se revoltou, os amigos se afastaram, os professores a recriminaram e ela acabou sendo convidada a se retirar da escola normal que frequentava.

Foi por essa época que elas se conheceram. Os pais de Luciana a puseram de castigo, aos quase dezessete anos, proibindo-a de sair de casa e matriculando-a em outro colégio, do outro lado da cidade, onde os rumores ainda não haviam chegado. Apesar da revolta, Luciana concordou com as imposições dos pais. Era menor de idade e não tinha muitas escolhas. Queria sair de Campos, mas não pretendia fugir de casa para se tornar prostituta em uma cidade grande. Tinha ambições maiores. Pretendia terminar o curso normal para poder ingressar numa faculdade no Rio de Janeiro, onde poderia se misturar às multidões e fazer passar despercebida a sua vida sexual.

Quando Luciana entrou na sala no meio do ano, chamou a atenção de muita gente. Era o tipo de garota cujo comportamento fugia aos padrões. Entrou calada, porém, sorridente, e foi sentar-se no único lugar vago na sala, ao lado de Marcela. Como era nova na escola e não conhecia ninguém, logo travou conversa com Marcela, que, por sua timidez, não tinha muitos amigos. Da conversa, passaram aos encontros, e daí a um relacionamento mais íntimo não demorou muito. Em breve, as duas estavam namorando, sem que a família de Marcela sequer desconfiasse, e a de Luciana preferisse não saber.

Terminado o ano letivo, já agora com dezoito anos completos e formada professora, Luciana decidiu partir. Chamou os pais e comunicou-os de sua decisão. Os pais demonstraram alívio e não se opuseram. Era mesmo melhor para eles ver-se livre daquela filha ingrata, a ovelha negra da família que só lhe trazia problemas e que manchara a sua reputação de gente honesta e direita. O pai ainda lhe deu dinheiro para as primeiras despesas, com a condição de que ela se arranjasse no Rio de Janeiro e não retornasse mais a Campos, a não ser que se emendasse e voltasse a ser uma moça decente. Luciana não questionou. Apanhou o dinheiro, arrumou a mala e partiu sem maiores complicações.

Para Marcela, as coisas não foram assim tão fáceis. Os pais nada sabiam sobre seu romance com Luciana e não queriam permitir que ela partisse com a amiga para uma cidade grande e cheia de tentações como o Rio. Não lhe deram nenhum apoio e chegaram mesmo a proibi-la de ir. Frágil demais para enfrentá-los, Marcela não insistiu, mesmo porque Luciana prometera escrever - lhe sempre.

As cartas de Luciana chegavam regularmente, até que, um dia, a moça lhe escreveu dizendo que havia passado num concurso público e que agora dava aulas numa escola do município. Alugara um pequeno apartamento de quarto e sala no subúrbio e convidava Marcela para ir viver com ela.

A felicidade foi tanta que Marcela pensou que o peito fosse explodir. Mas o que poderia fazer? Contar aos pais seria loucura, porque eles jamais a deixariam partir. Aos dezenove anos, decidiu que o melhor seria fugir. Como não podia contar com a ajuda financeira do pai, escreveu a Luciana, que lhe enviou dinheiro suficiente para a viagem. Às escondidas, Marcela comprou a passagem e, no dia e hora marcados, subiu no ônibus e foi embora, ao encontro de Luciana, talvez para nunca mais retornar à terra natal.

Foi assim que seu relacionamento começou. Luciana estava indo bem na profissão e passou no vestibular para odontologia. Com sua ajuda, Marcela ingressou na faculdade de letras e conseguiu um emprego de auxiliar numa escola particular. Mais tarde, mudaram-se para um apartamento melhor, num bairro de classe média, e levavam a vida em paz e tranqüilidade, sem ninguém para se intrometer em suas vidas. Os vizinhos nada sabiam sobre seu relacionamento e, para todos os efeitos, elas eram apenas estudantes vindas de outra cidade que dividiam um apartamento.

Essas lembranças fizeram estremecer o coração de Marcela. Haviam sido felizes por quase oito anos, e agora Luciana lhe dizia que tudo estava terminado. O que faria da vida dali para a frente? Na verdade, não tinha mais vida. A vida de Marcela havia acabado na hora em que Luciana cruzara a porta do apartamento, dizendo que não pretendia mais voltar. Ela ainda não entendia o que havia feito de errado. “Nada”, dissera Luciana, mas ela não acreditava. Alguma coisa havia acontecido. Chegou a pensar que Luciana havia conhecido outra pessoa, mas ela lhe assegurou que não. Simplesmente o amor que as unira no passado havia terminado, e ela achava que já era hora de cada uma seguir o seu próprio caminho.

Mas os caminhos de Marcela estavam entrelaçados aos de Luciana, ou assim ela pensava. Não podia e não queria viver sem ela. Quando ela se foi, Marcela ficou desesperada e se atirou num choro profundo, até que apanhou um livro de poesias, que era a única coisa que a fazia se acalmar. Começou a ler Morte e Vida Severina, até que aquela passagem lhe chamou a atenção. Assim como a personagem, ela também duvidava se ainda valia a pena viver. A miséria também havia invadido a sua vida, pela carência de amor. Saltar da ponte lhe parecia a única solução, e aquelas pílulas seriam sua ponte para a outra vida, para o nada, para uma existência em que o vazio não a faria sentir a falta da presença de Luciana.

Marcela sentou-se na cama e ficou olhando o vidro de remédios, ainda hesitando entre tomá-los ou não. De vez em quando, olhava para o livro no chão e para o retrato de Luciana na mesinha-de-cabeceira, e seus olhos voltavam a derramar lágrimas sentidas.

– Ah! Luciana, não posso viver sem você! Por que fez isso comigo, por quê?

Ao pensar na amada, Marcela sentia que não havia outra saída para a sua dor. Ou era a morte, ou a vida vazia. Preferia morrer. Decidida, levantou-se e foi apanhar água na cozinha. Voltou para o quarto e derramou o vidro de remédios nas mãos, enfiando-os todos na boca e sorvendo a água em goles largos. Repetiu esse movimento até não restar mais nenhum comprimido no frasco. Chorando cada vez mais, deitou-se na cama, acomodando-se sobre os travesseiros. Apanhou o retrato de Luciana, agarrou-se a ele e fechou os olhos. Agora era só esperar a chegada da morte.

Ao sair do apartamento que dividia com Marcela, Luciana sentia a garganta estrangular. Afinal, foram muitos anos de convivência, e, por mais que ela não quisesse continuar a viver com Marcela, não lhe era indiferente. Haviam sido amigas, amantes e confidentes por muito tempo. Dividiram alegrias, tristezas e dificuldades. Venceram na vida sozinhas, lutando contra tudo e contra todos, firmando-se no mundo como mulheres e pessoas de bem. Aquilo não era um nada. Ao contrário, era algo para se lembrar e orgulhar por toda a vida.

Naquele último ano, as coisas entre as duas não iam nada bem. Luciana sentia vontade de conhecer outras pessoas, de viajar, de freqüentar seminários e congressos relacionados à sua profissão. Mas Marcela, embora não se opusesse, ficava insegura com a sua ausência, telefonando a toda hora para os hotéis em que ela se hospedava, cobrando as ligações não retornadas, temendo que ela se interessasse por mais alguém. Mas o que Luciana queria era viver com liberdade. Embora gostasse de conhecer pessoas interessantes, não era sexualmente que procurava se envolver com elas. Apreciava as conversas intelectuais, principalmente aquelas relacionadas a sua profissão.

Pena que Marcela fosse tão insegura e assustada. A muito custo conseguira passar num concurso também, para dar aulas de português numa escola científica. Ela, Luciana, deixara o magistério para se dedicar à odontologia, para se entregar exclusivamente ao pequeno consultório que, com muito sacrifício, conseguira montar no Méier, juntamente com Maísa, uma amiga de faculdade. Afinal, fora para isso que juntara dinheiro por tantos anos, para poder realizar o seu sonho de ter um consultório que fosse seu.

A insegurança e os medos de Marcela foram, talvez, os maiores responsáveis pelo fim de seu relacionamento. Luciana era muito decidida e segura, independente e confiante, tudo o que Marcela não era. Isso a decepcionava, porque Marcela era o seu oposto e não lhe causava admiração. Nunca fazia o que Luciana esperava, encolhia-se diante de tudo e de todos, sempre com medo de que descobrissem o seu relacionamento. Tal atitude foi cansando Luciana cada vez mais, até que, saturada e sem ver perspectivas de mudança em Marcela, decidiu que o melhor mesmo, dali em diante, seria se separarem.

Durante muito tempo, Luciana sentiu-se responsável por Marcela, por tê-la convencido a deixar Campos e a segurança dos pais. Fora Maísa quem lhe mostrara que Marcela era dona de sua vida e capaz de decidir o seu próprio caminho.

– Sei como se sente – dissera Maísa. – Marcela veio de Campos atrás de você. Mas veja o que fez por ela. Não fosse por você, ela não estaria formada nem teria o emprego que tem. Se é professora de letras, é graças a você.

– Não é bem assim, Maísa – contestou Luciana. – Marcela sempre foi muito inteligente.

– Mas não é nada decidida. É medrosa e insegura. Foi você quem lhe deu forças, quem a encorajou a ser alguém. Agora está na hora de ela caminhar com as próprias pernas. Não é justo que você se mantenha presa a quem não ama só por sentimento de culpa ou gratidão.

Maísa tanto falou, que Luciana resolveu tomar aquela decisão. Gostava muito de Marcela, mas não podia mais viver com ela. Queria liberdade para desfrutar da independência recém-conquistada. E depois, não era justo abrir mão de seus planos para satisfazer as carências de Marcela. Ela agora era uma mulher mais madura e capaz de gerir a própria vida.

Por isso, tomou aquela atitude. Foi difícil terminar uma relação de mais de sete anos, mas ela estava decidida. Procurou ser o mais amável possível, sem deixar de ser sincera. Expôs a Marcela os seus sentimentos, seus anseios, e afirmou que a decisão era irrevogável. Não a amava mais, embora lhe tivesse muito afeto. Queria o melhor para ela, mas queria o melhor para si também. Podiam continuar sendo amigas, mas sem envolvimento emocional ou sexual.

Quando Marcela desatou a chorar e atirou-se em seus braços, implorando-lhe que não partisse, Luciana quase desistiu, mas algo dentro dela lhe dizia que seria pior. Estaria alimentando uma mentira e passaria a viver insatisfeita para que Marcela não sofresse. Não era justo nem com ela, nem com Marcela. O melhor, para ambas, era a separação, por mais que Marcela não conseguisse enxergar dessa forma. Com firmeza, Luciana desvencilhou-se de Marcela, apanhou a mala e partiu apressada, esquecendo-se até de deixar suas chaves. Sabia que Marcela não a seguiria, com medo de que os vizinhos percebessem que ela estava desesperada por ter sido abandonada por outra mulher.

Luciana partiu, e Marcela ficou chorando atrás da porta, até que resolveu tomar aquela atitude extrema e desesperada. Embora Luciana não soubesse de suas intenções, uma inquietação começou a se alastrar pelo seu peito, e um medo indizível se apossou de seu coração. E se Marcela fizesse alguma besteira? Luciana foi caminhando com aquela sensação horrível, tomou um táxi e se dirigiu para o apartamento de Maísa, com quem iria morar dali em diante. Maísa não era homossexual, mas era pessoa de cabeça aberta e sem preconceitos, cujos pais a enviaram cedo para estudar no Rio de Janeiro.
Ao chegar à casa de Maísa, a amiga estava terminando de lavar a louça do jantar, e Luciana pousou a mala na saleta e foi ao seu encontro na cozinha.

– Sinto se não a esperei para jantar – disse Maísa –, mas você demorou muito e eu estava morrendo de fome. Mas ainda tem arroz e feijão na panela. É só fritar um bife. Ah! e tem salada na geladeira.

– Não quero nada, Maísa, obrigada.

Maísa enxugou as mãos no pano de prato e aproximou-se de Luciana, que se sentou à mesa.

– E aí? Como é que foi? Correu tudo bem?

– Pior do que eu imaginava. Marcela não quis aceitar e ficou desesperada. Tive que largá-la chorando e sair meio na marra.

– Que coisa chata.

– Sim, foi muito chato. E triste também.

– Mas o importante é que você conseguiu.

– Consegui… é, consegui. Mas estou preocupada. Sinto que Marcela é capaz de alguma besteira.

– Será?

– Não sei. Meu coração está pequenininho.

– Você quer que eu dê um pulo lá e veja se está tudo bem?

– Você faria isso?

– É claro. Não me custa nada. E depois, também não quero que Marcela faça nenhuma besteira.

De posse das chaves que Luciana esquecera de entregar, Maísa chegou ao apartamento de Marcela. Tocou a campainha uma, duas, três vezes, e nada dela abrir. Encostou o ouvido na porta, mas não escutou nada. Ou ela havia saído, ou não queria atender, ou, o que era pior, alguma coisa havia acontecido. Maísa não podia esperar mais. Apanhou a chave na bolsa e meteu-a na fechadura, abrindo-a com mãos trêmulas.

– Marcela! – chamou. – Oi! Você está aí?

O apartamento estava escuro e em total silêncio, e Maísa foi acendendo as luzes por onde passava. Acendeu a sala, o corredor, e deu uma espiada na cozinha, do outro lado. Ela parecia deserta, e Maísa seguiu para o quarto. A porta estava fechada, e ela bateu de leve. Ninguém respondeu, e ela bateu novamente. Silêncio. Experimentou a maçaneta, que cedeu de imediato. Maísa empurrou a porta, que foi se abrindo lentamente, e acendeu a luz. Rapidamente, passou os olhos pelo quarto e viu…

Num átimo, compreendeu tudo. Marcela deitada na cama, o retrato de Luciana em seus braços, o frasco de remédio no chão. Maísa soltou um grito de pavor e correu para a outra, tentando escutar seu coração. As batidas pareciam fracas, a respiração, quase inexistente. Mais que depressa, correu para o telefone e ligou para o pronto socorro. Deu o endereço ao atendente, explicou mais ou menos a situação, largou o fone no gancho e arrancou o retrato de Luciana das mãos de Marcela, saindo às pressas logo em seguida.

Coração aos pulos, Maísa desceu as escadas correndo e foi ocultar-se do outro lado da rua, sob a sombra de um poste cuja lâmpada estava queimada. Pouco depois, uma ambulância apareceu, e homens vestidos de branco entraram apressados no edifício. Mais atrás, uma patrulhinha estacionou, e dois guardas desceram. Alguns vizinhos apareceram nas janelas, mas ninguém sabia de nada, ninguém a havia visto. Maísa tinha medo de qualquer coisa que se relacionasse à polícia, por causa de seu envolvimento com o movimento estudantil na faculdade. Fizera parte da UNE e chegara a ser fichada na polícia, mas o pai do namorado, que era desembargador no Tribunal de Justiça, conseguira soltá-la. De lá para cá, jurara a si mesma que não se envolveria mais com política ou a ditadura, e evitava qualquer contato com a polícia.

Instantes depois, os enfermeiros apareceram carregando a maca, com o corpo de Marcela estendido, e Maísa apertou os dentes na mão cerrada. Estaria ela morta? Não saberia dizer. Esperou até que os guardas saíssem também e voltou para casa.

– E então? – indagou Luciana, logo que ela abriu a porta. – Como é que ela está?

Maísa estava lívida feito uma folha de papel. Apanhou um copo d’água e bebeu avidamente, jogando-se pesadamente no sofá.

– Você nem queira imaginar – começou ela a dizer. – Quando cheguei lá, encontrei Marcela deitada na cama, agarrada ao seu retrato, com um vidro de pílulas para dormir caído no chão.

– Meu Deus! Ela está morta?

– Não sei. Quando saí, ela estava respirando.

– Você a deixou lá?

– É claro que não. Liguei para a emergência e me mandei. Ah! e tirei a foto de suas mãos.

Maísa apanhou na bolsa o retrato de Luciana, estendendo-o a ela.

– Por que fez isso? – quis saber Luciana.

– Você sabe que não posso ter complicações com a polícia. Pensei que você também não quisesse. Imagine o que a polícia não vai dizer quando descobrir que ela tentou se matar por sua causa.

– Mas o que aconteceu a ela? Para onde a levaram?

– Para o hospital, é claro.

– Que hospital? Como é que vamos saber para onde ela foi?

– Quer um conselho, Luciana? Sei que é difícil, mas é melhor esquecer o que houve. Não há nada que você possa fazer. Marcela está sendo cuidada, não é mais problema seu.

– Como pode ser tão fria, Maísa? E se ela morrer?

– Não quero que ela morra, mas não podemos fazer mais nada. Agora, é com os médicos.

– Você está é com medo de que a polícia venha bater aqui, não é?

– Já disse que não posso me envolver…

– Eu sei, eu sei! Mas eu também não posso ficar aqui sentada sem saber o que aconteceu a Marcela. Tenho que fazer alguma coisa.

– Acho melhor você não fazer nada. A polícia vai querer saber quem foi que telefonou.

– Posso dizer que fui eu.

– Ah! é? E por que se mandou? Só foge quem é culpado. Pelo amor de Deus, Luciana, não me crie problemas. Mais tarde, posso pedir ao Breno para ver se o pai dele descobre alguma coisa.

Embora contrariada, Luciana acabou aquiescendo. Tinha medo de comprometer Maísa, que tudo fizera para ajudar. Em consideração a ela, esperaria até o dia seguinte, quando Breno, seu namorado, poderia obter algum tipo de informação através do pai. Mas se ele não conseguisse nada, ela mesma iria procurar Marcela, nem que tivesse que telefonar para todos os hospitais da cidade.

De Todo o Meu Ser



Tudo é permitido dentro dos princípios divinos, mas aquele que afeta o equilíbrio do mundo, de alguma forma, terá que recuperá-lo.


Tudo na vida trabalha para que cada pessoa desenvolva suas capacidades. Por isso, Marianne, com muita coragem, decide reencarnar e viver em meio à loucura. Numa jornada cheia de obstáculos e desafios, busca superar seus pontos fracos.

Marianne conta com o auxílio de seus guias espirituais, que lutam para que a jovem entenda que o maior desafio da vida não é o confronto com as situações do mundo, mas o esforço para que viva a verdade de todo o seu ser.

Prólogo

O sol mal acabara de nascer e Marianne já estava de pé, fitando com olhos marejados a imensa bola alaranjada que surgia no horizonte. Pela janela aberta, entrava uma brisa suave, trazendo o doce aroma do jardim, que a menina inspirou com prazer. Foi soltando o ar aos pouquinhos, sentindo imenso bem-estar.

Apanhou a túnica branca que passara a usar desde que chegara ali, vestiu-a com cuidado e penteou os cabelos, bem mais compridos. Olhou-se no espelho e sorriu. Nunca antes se julgara bonita. Agora, contudo, seu semblante havia adquirido um brilho e uma suavidade que até então não existiam.

Quando acabou de se vestir, ouviu batidas leves na porta e virou-se, no exato instante em que um rapaz alto e muito claro entrou.

– Bom dia, Marianne – cumprimentou ele, endereçando-lhe um sorriso jovial. – Como se sente hoje?

– Bem – respondeu ela, dando-lhe um beijo delicado nos lábios. – Graças a você, já consegui me reequilibrar.

– Graças a mim, não, graças a você mesma. – Percebendo o seu embaraço, ele prosseguiu com ternura. – O que foi?

Ela apertou as mãos dele e confessou:

– Em minha confusão mental, não lhe disse coisas que gostaria de ter dito…

– O que, por exemplo?

– Eu o amo. Sabia disso?

Ele sorriu e respondeu com emoção:

– Sabia sim. Não precisava dizer.

Era verdade. Pela primeira vez em muitos anos, Marianne dizia a Ross que o amava. E como o amava! Não fosse por ele, sua vida teria sido muito mais difícil. Aliás, a vida de Ross teve praticamente uma finalidade: seu amor por Marianne era tanto que ele pediu para reencarnar ao lado dela, só para ajudá-la a atravessar o tortuoso caminho que escolhera. Fora o único.

– Estou muito feliz por ter você – tornou Marianne, também emocionada. – Hoje posso compreender muitas coisas. Principalmente o valor do amor.

Ross não disse nada. Sorriu e estendeu a mão para ela, convidando-a para sair. Fazia já algum tempo que haviam chegado àquele lugar e se preparavam para uma nova jornada na terra, dessa vez, no Brasil. Estavam em uma cidade invisível, localizada no espaço astral situado bem acima de Londres, preparada para receber espíritos que, a exemplo de Ross e Marianne, perderam suas vidas na guerra.

De mãos dadas, os dois saíram para o jardim. Marianne andava descontraída, como nunca pudera caminhar na Terra, a toda hora inspirando aquele ar revigorante. Sua aparência era a de uma menina de dezesseis anos, ao passo que Ross mantivera as feições do jovem maduro e muito seguro de si mesmo que já era aos vinte anos.

– O que será de mim agora? – questionou ela, ainda incomodada pela dor das muitas lembranças.

– Você sabe que vai reencarnar em breve.

– Não sei se terei coragem.

– Terá sim. Já passou pelo pior.

– Acho que não quero mais voltar. Quero ficar aqui. É tão bom…

– Você não pode, não deve. E os seus projetos de vida? Quer adiá-los?

Marianne olhou-o indecisa. Sua última encarnação, bastante difícil e dolorosa, fora uma escolha sua para acelerar a recomposição de seu corpo fluídico, tão comprometido pelos excessos do passado. Aquela vida não era nem de longe a vida que sonhara para si mesma. Tratava-a apenas de uma encarnação intermediária, na qual fizera uma espécie de limpeza em seu corpo espiritual, preparando-o para uma outra jornada, dessa vez mais prazerosa e alegre.

Com os olhos úmidos, ela respondeu convicta:

– Não quero adiar nada. Já perdi muito tempo. Não vou mais desperdiçar a vida.

– Ninguém perde tempo. O tempo é o mestre dos nossos destinos, porque é através dele que vamos coletando experiências para o nosso crescimento. Ninguém desperdiça tempo. Nós o aproveitamos com maior ou menor intensidade, mas nunca de forma inútil.

– Tem razão. Só que, quando penso no que já fiz… Fui tão ruim… A vida toda, fui uma pessoa má.

– Não diga uma barbaridade dessas! Você sabe que não era má. Era apenas descontrolada, em virtude de suas dificuldades mentais e espirituais. Mas maldade… essa é uma palavra muito forte que, decididamente, não se aplica a você.

– Que bem fiz nessa encarnação?

– Transformou a si mesma e salvou a vida de seus irmãos. Só isso já é o suficiente.

Ela não respondeu. Sentaram-se na grama do jardim para trocar ideias com uns amigos, e Marianne pousou a cabeça no ombro de Ross, distanciando-se da conversa. Não estava triste, mas seus olhos, de repente, começaram a divagar pelo horizonte, evocando lembranças dos últimos tempos.

Duas grossas lágrimas surgiram em seus olhos, e ela apertou o braço de Ross. O rapaz afagou os seus cabelos, e ela questionou:

– Como será a vida no Brasil?

– Deve ser boa, não sei. Dizem que é um país muito bonito.

– Vou deixar todo mundo aqui.

– Ao contrário, todos já foram para lá.

– Menos minha mãe.

– Você sabe que ela pertence a outra realidade. Vocês formaram elos poderosos e perpétuos, que a distância não poderá desfazer.

Marianne calou-se acabrunhada. Partiria em breve para uma nova encarnação no Brasil, junto daqueles que a vinham acompanhando por muitas vidas. Kate, contudo, não fazia parte desse grupo. Conhecera-a naquela vida, quando ela se dispusera a recebê-la como filha, não fazia muito tempo. Com o tempo, aprendera a gostar dela. E quem poderia não gostar de Kate?

A Atriz












Tudo o que passamos deve servir para o nosso crescimento, não para o nosso desespero.

O que leva uma atriz sensual e famosa a abandonar uma vida de luxo e brilho para morrer em completa solidão? Por que motivo um jovem rico e bem-sucedido se distancia da família e se entrega, impassível, à obsessão do passado? E que elo poderoso pode unir essas duas pessoas que, aparentemente, nada têm em comum?

Glamour e decadência caminham lado a lado nessa história que se desenvolve em dois tempos, distantes na passagem dos anos, mas próximos nas experiências e nos sentimentos ainda não resolvidos. Ódios nascem e são desfeitos; o amor se recolhe diante da indiferença, até que a dor traz a compreensão da vida e o perdão ressurge como chave para libertar a alma dos grilhões do ressentimento.

A Atriz vivencia a violência, a raiva e a decepção, transformando a morte numa passagem para o esquecimento e fuga. Mas morrer não é a solução dos problemas, e ela descobrirá que só com coragem e amor é que poderá encontrar o caminho para a reconciliação consigo mesma.

Prólogo

Por entre as flores recém-desabrochadas, Tália caminhava a passos vagarosos, aspirando lentamente o delicado perfume que se espalhava no ar. De quando em vez, detinha a caminhada e deixava o olhar vagar a esmo, como se buscasse algo no horizonte que não podia definir. Seria possível? Após tantos anos, já perdera as esperanças de que um dia a encontrassem. Estava perdida para o mundo dos homens e não devia mais se preocupar com ele.

Ainda assim, seu coração se apertava a cada passo. Sentiu uma comichão pelo corpo e se encolheu toda, e um frio lhe percorreu a espinha. Aos poucos, o frio foi aumentando, como se alguém a estivesse desnudando ao vento. O que seria aquilo? Levara muito tempo para se acostumar a não ter mais aquelas sensações, e agora isso? Olhou ao redor, mas nada lhe pareceu anormal. O ar estava tépido como sempre, e uma brisa suave refrescava sem enregelar. Se era assim, de onde vinha aquela sensação gelada que parecia penetrar-lhe até os ossos?

Resolveu voltar para casa. Fazia já algum tempo que conquistara o direito de ter uma casinha só para ela, o que era muito bom. Seu lar era muito simples, porém, bastante asseado e claro. Lá, tudo parecia mais límpido e branco, e o ambiente era sempre agradável e sossegado. Talvez fosse melhor se deitar um pouco. Quem sabe não estava ficando doente?

Doente? Não era mais possível ficar doente ali. No dia em que chegou, estava cheia de dores no peito, ardendo em febre e delirando. Logo adormeceu e, quando despertou, o peito parecia menos dolorido e a respiração, quase regular. Levou algum tempo para que se recuperasse de todo, mas finalmente conseguiu. As lesões em seu corpo fluídico lentamente se foram, e ela começou a se interessar pela nova vida. Aos pouquinhos, foi deixando para trás as lembranças daquela outra vida, cheia de brilho e de sofrimento.

Essas lembranças a entristeceram. Ninguém, em lugar nenhum do mundo, sabia o que fora feito dela. Nem ela sabia ao certo quantos anos haviam se passado desde que deixara a terra; nunca pensara naquilo. O bem-estar da vida espiritual era tanto, que as coisas da matéria deixaram de lhe interessar. Contudo, uma pontinha de tristeza começava a incomodá-la, despertando a dor de saber-se abandonada por aqueles com quem convivera tantos anos. Mas ela jamais retornara à terra para saber o que fora feito dos seus. Como podia agora esperar que se lembrassem dela, se ela mesma os havia esquecido?

Balançou a cabeça vigorosamente, tentando afugentar as lembranças, e alcançou o portãozinho do jardim, surpreendendo-se com a presença de sua mentora e amiga parada à sua porta.

– Sílvia! – exclamou. – Que surpresa boa. Vamos entrando.

Sílvia sorriu carinhosamente e beijou Tália no rosto, seguindo-a para dentro de casa. Sentou-se num sofazinho cor-de-rosa que havia perto da janela e esperou até que Tália se acomodasse a seu lado.

– Muito bem – falou Tália, apertando os braços gelados e sentindo uma repentina tontura. – Essa visita inesperada tem algum motivo especial?

– Receio que sim – respondeu a amiga, fitando Tália com uma expressão indefinível.

– Do que se trata?

– Trata-se de você. Seu corpo está sendo encontrado na terra, neste exato momento.
Com ar de assombro, Tália se encolheu toda e desatou a chorar, sentindo na pele uma umidade glacial.

– Como isso é possível?

– Não está se sentindo estranha?

– Tenho calafrios… e as lembranças de minha vida na terra surgiram repentinas… Mas não pensei estar ainda ligada ao corpo físico.

– Você não está ligada. O pensamento de certa pessoa foi que formou uma ponte energética com você, trazendo-lhe as impressões do que tem se passado na terra.

– Uma pessoa? Quem?

De repente, Tália viu-se transportada, ao lado de Sílvia, para o casebre onde seus ossos jaziam esquecidos. Algumas árvores penetravam pelas janelas destruídas, e o teto desabara quase por completo. O mato praticamente se fechara sobre o pequenino chalé e formara uma parede quase impenetrável ao redor. Alguns homens, com machados e marretas, estavam derrubando a porta, emperrada pelas dobradiças enferrujadas.

A golpes de machado, os homens derrubaram a porta e entraram. A sala estava toda em ruínas, com os móveis comidos e apodrecidos pelo vento e a chuva. Os homens penetraram devagar e foram percorrendo os ambientes do primeiro andar, passando pela sala, depois a cozinha e o lavabo minúsculo. Um deles se adiantou e experimentou o primeiro degrau da escada de madeira, que rangeu sob seus pés.

– Vai subir? – perguntou Márcio, um dos rapazes.

– É perigoso – respondeu outro.

– Vou subir. Se há alguma possibilidade de que o corpo de minha avó esteja lá em cima, quero descobrir.

Tália sentiu um choque. Como assim, avó? Buscou os olhos de Sílvia, que apertou a sua mão e esclareceu com voz carinhosa:

– Sim, Tália, é o seu neto que está aí. Seu neto Eduardo, que hoje está com vinte e três anos de idade.

Com olhos úmidos, Tália se aproximou do neto, que sentiu um leve arrepio e foi envolvido por estranha emoção.

– O que houve, Edu? – indagou Márcio. – Não está se sentindo bem?

– Não é nada.

Deixando de lado a emoção, Eduardo firmou o pé no degrau e começou a subir. A escada ia rangendo e alguns degraus afundaram, fazendo com que todos se sobressaltassem, inclusive Tália.

– Não se preocupe – sossegou Sílvia. – Ele não vai cair.

Tália agradeceu com o olhar e subiu com Sílvia atrás do neto. Eduardo chegou ao andar de cima e olhou para baixo, onde os outros o fitavam ansiosos.

– E aí? – perguntou alguém. – Tem alguma coisa?

– Vou olhar agora – respondeu Eduardo, virando-se para um segundo andar destruído e escorregadio.

A escada terminava numa espécie de saleta, com três portas ao redor. Intuitivamente, Eduardo se dirigiu à do meio e empurrou. A porta imediatamente cedeu, indo ao chão com estrondo e fazendo com que todos lá embaixo começassem a gritar.

– Não foi nada – berrou ele, para acalmar os amigos. – Apenas uma porta que caiu.

Com uma certa ansiedade, Eduardo passou por cima da porta e entrou no quarto frio e úmido, tomando cuidado com as tábuas soltas no soalho. Olhou de um lado a outro e viu algo envolto em trapos, sobre o que parecia ser uma cama de ferro. Tentando controlar os passos, caminhou para lá, e lágrimas lhe vieram aos olhos ao contemplar aquela estranha visão. Misturados aos trapos sujos, vários ossos se encontravam dispostos, formando um corpo humano perfeito.

– Edu!

– Eduardo!

– Diga alguma coisa, cara, estamos preocupados!

Os amigos não paravam de chamar, mas Eduardo não conseguia responder, fascinado que estava com aquela fantástica descoberta. No plano astral a seu lado, Tália chorava muito, fitando, pela primeira vez, os restos do que um dia fora o seu corpo. O neto, sem saber, captou-lhe as impressões e chorou também. Ajoelhado ao lado do colchão desmanchado, passou os dedos de leve sobre os ossos e soltou um suspiro.

– Ah! minha avó, então foi aqui que você se meteu, hein?

Em poucos instantes, Márcio alcançou o quarto e acercou-se de Eduardo.

– Puxa, Edu! Por que não respondeu? Estávamos preocupados… – calou-se espantado, vendo o monte de ossos aos pés do amigo. – É… é a sua avó?

– É o que parece. Mas só um teste de DNA poderá nos dizer.

– Meu Deus! O que vamos fazer?

– Recolher os ossos, dar uma olhada em tudo e ir embora. O resto é com o laboratório.

Márcio foi correndo, na medida do possível, buscar uma caixa. Voltou poucos instantes depois e ajudou Eduardo a colocar os ossos lá dentro. Com cuidado, foram fazendo o caminho de volta, escolhendo as tábuas em que deveriam pisar para não cair. Os amigos embaixo ajudaram a descer o caixote, e Edu e Márcio desceram em seguida.

– Pronto – disse Eduardo, batendo as mãos para limpá-las. – Missão cumprida.

– Será que é mesmo a sua avó que está nessa caixa? – indagou um dos rapazes.

– Edu vai mandar fazer um teste de DNA – disse Márcio. – Não vai, Edu?

– Vou sim. Ainda que minha mãe não queira nem saber, tiro o meu sangue e mando analisar tudo. Tenho que descobrir.

Ao ouvir aquelas palavras, Tália fitou Sílvia com ar de interrogação.

– Faz muito tempo que você desapareceu – esclareceu Sílvia. – Ninguém nunca soube do seu paradeiro. Pensaram que você havia largado tudo e sumido no mundo. Depois de algum tempo, começaram a desconfiar que você havia morrido. Procuraram daqui, indagaram dali, até detetive contrataram, mas ninguém conseguiu descobrir nada.

– Nunca encontraram esse lugar?

– Como poderiam? É longe de tudo, da cidade e das fazendas. Quando você comprou este sítio, usou seu verdadeiro nome, lembra-se? Maria Amélia Silveira Matos. Naqueles tempos sem televisão, quem é que ouviu falar em Maria Amélia?

– Mas ninguém nunca nem desconfiou de que eu poderia ter me escondido aqui?

– Como, Tália? Por que viriam a esse fim de mundo para procurá-la? Você nunca contou que havia comprado esse sítio.

– É verdade… – lamentou-se com pesar. – E como foi que me descobriram agora?

– Um homem comprou as terras vizinhas e se interessou por estas. Foi ao cartório da cidade, mandou fazer uma pesquisa e descobriu que o sítio havia sido comprado por uma tal de Maria Amélia Silveira Matos. Tampouco ele sabia quem você era, mas não foi difícil descobrir. O detetive que ele contratou investigou e descobriu que Maria Amélia era o nome verdadeiro de uma antiga e famosa vedete, Tália Uchoa, desaparecida na década de 1950. Com essa informação, o resto foi fácil. Ele achou a sua filha no Rio de Janeiro, e ambos chegaram à conclusão de que a assinatura no livro do cartório era mesmo a sua. Sua filha vendeu as terras sem nem titubear, mas seu neto, fascinado com as suas histórias, pediu para vir averiguar. O resto, você mesma viu.
Tália chorava de emoção ao ouvir falar de pessoas e coisas que há muito enterrara em seu passado. Sentiu que havia perdido uma grande parte de sua vida e olhou para o neto, que ia longe com os amigos e a caixa contendo seus ossos.

– Minha filha… Pelo que pude perceber, Diana não quer nem ouvir falar de mim.

– Ela ficou muito ressentida com o seu abandono e nunca conseguiu superar.

Ela balançou a cabeça, apertando os lábios para não soluçar, e indagou hesitante:

– Quem foi que a criou?

– O pai.

– Honório!?

– Ela tem outro?

– Mas… mas Honório não sabia que ele era o pai. Eu nunca contei…

– Você não contou, mas…

– Ione? – Sílvia assentiu. – Não pode ser! Ela me prometeu…!

– Você deixou uma filha órfã. O que esperava que ela fizesse?

– Não foi minha intenção abandoná-la.

– Mas a menina acabou ficando só, de todo jeito. Honório se revelou excelente pai, e Diana cresceu em um ambiente harmonioso e equilibrado, apesar de tudo.

– Ele criou Diana sozinho? Não acredito.

– Sozinho, não. Criou-a com a ajuda da esposa.

– Honório se casou? Quem diria… Com quem?

– Maria Cristina.

– O quê!? Honório casou-se a minha irmã? Como ele pôde fazer isso comigo? Ele sabia que Maria Cristina e eu não nos dávamos bem.

– Pois ela se deu muito bem com ele, e melhor ainda com Diana.

– Não é à toa que minha filha me odeia.

– Ela não a odeia. Foi criada pela tia porque a mãe sumiu no mundo e a abandonou. Como esperava que ela se sentisse?

– Eu não a abandonei!

– Mas é nisso que ela acredita até hoje.

– A verdade se perdeu depois que eu parti…

– Cada coisa está no seu lugar, seguindo o curso que a natureza traçou. E depois, não vejo por que se preocupar com isso agora. Não foi você mesma quem quis assim?

– Não quis me matar – respondeu Tália acabrunhada.

– Mas você morreu e a vida teve que continuar sem você.

– Honório… – divagou Tália. – Foi há tanto tempo… Como será que ele está?

– Se essa pergunta é para mim, saiba que ele está muito bem, apesar da idade avançada.

– Ele ainda está vivo?

– Hum, hum.

– E Maria Cristina? E Ione? E… os outros?

– Ele é o único que vive entre os encarnados. Os outros já partiram.

– Por que nunca os vi?

– Respeitaram a sua vontade de não ser incomodada e nunca a procuraram.

– E Honório?

– Está com mais de noventa anos e ainda goza de saúde regular para um homem de sua idade. Mas agora chega. Todos já se foram. Vamos embora também.

Tália olhou para a trilha aberta na mata por seu neto e os demais e percebeu que eles haviam desaparecido. Olhou mais uma vez ao redor e deteve o olhar por uns segundos a mais sobre o local em que seus ossos jazeram e sentiu o peito se confranger. Perdera uma parte importante de sua vida, enfurnada no astral como se ele fosse um campo de refugiados. Aquilo não era uma guerra. Os tempos de guerra eram parte do passado, assim como ela se tornara parte do passado também.

Gêmeas












Se quem procura acredita e merece, encontra o que está buscando.

A história das gêmeas Suzane e Beatriz, cheia de aparentes coincidências impossíveis e inexplicáveis, leva-nos a compreender que existe um sistema inteligente de leis que rege nosso destino. Essa história nos ajuda a compreender que nossas ilusões do mundo nos cegam e nos distanciam dos verdadeiros valores da vida. Nossos caminhos se entrelaçam nos levando a experiências que nos revelam a certeza e a perfeição de tudo.

Prólogo

Aquela não seria uma noite convencional na pequena cidade de Barra do Bugres, em Mato Grosso, a 150 km de Cuiabá, onde apenas os uivos do vento acompanhavam a agonia de Severina, que se retorcia na cama com as dores do parto. Fazia já sete horas que praticamente agonizava, sentindo as contrações aumentarem a cada minuto, a barriga estufando como se, a qualquer momento, fosse estourar. A parteira enfiava, sem cerimônia, os dedos entre suas pernas, tentando localizar os gêmeos que lutavam entre si por uma chance de vida.

– Será que não é melhor chamar um doutor? – sugeriu Roberval timidamente, apertando nas mãos o chapeuzinho roto de lavrador.

– Não, não, não – objetou a parteira severamente. – Médico, nem pensar.

– Mas ela está sofrendo…

– Isso não é nada. Passa logo. Em breve os bebês nascem e tudo se acaba.

– Mas Dona Leocádia, a coisa parece feia. Minha Severina não vai resistir.

– Saia daqui, homem! –gritou ela, enxotando Roberval para fora do quarto.

Roberval saiu cabisbaixo. Não entendia o que dera em Severina para contratar os serviços daquela mulher esquisita, que aparecera na roça de repente, intitulando-se parteira, justo quando ela estava para ganhar criança. Ainda se lembrava do dia em que conhecera Dona Leocádia. Ela chegara com ares de figura importante, perambulando entre as ruas com olhos ávidos. Andou para cima e para baixo, sempre observando tudo, até que bateu com os olhos em Severina e seu ventre ainda pouco intumescido de quase quatro meses de gravidez.

Com muito jeito, aproximou-se de Severina e fez amizade com ela, dizendo-se parteira interessada no seu bem-estar. Roberval achou aquilo muito estranho, mas Leocádia começou a fazer-lhes visitas diárias e a dar-lhes conselhos sobre a saúde da mulher e do bebê. Trazia coisas gostosas para Severina comer, dava-lhe remédios e vitaminas, tudo para garantir que a criança viesse ao mundo saudável e forte.

Em pouco tempo, virou amiga íntima, conselheira e confidente. Não havia lugar a que Severina fosse que Leocádia não a acompanhasse. Eles moravam num casebre afastado da cidade, de onde Roberval seguia a pé até a fazenda em que trabalhava, enquanto Severina cuidava da casa. Leocádia encontrou uma casinha simples para alugar, bem na periferia, e ia visitá-los todos os dias, sempre interessada na gravidez da mulher.

Roberval achou aquilo tudo muito estranho, mas Severina dizia que Leocádia era uma boa pessoa e iria ajudá-los a mudar de vida. Ele indagava como e por quê, mas as respostas de Severina eram sempre lacônicas, e ele ficava sem entender. Dona Leocádia, por sua vez, parecia ignorá-lo. Cumprimentava-o polidamente, mas não lhe dava atenção, e sempre que ele perguntava alguma coisa, ela lhe endereçava um sorriso frio e mudava de assunto.

O tempo foi passando, e ele acabou se acostumando com a presença de Leocádia, desagradando-se, contudo, com os exames periódicos que ela fazia em Severina. Roberval questionava aqueles procedimentos, aconselhando a mulher a procurar um médico da cidade, mas Severina era categórica: Dona Leocádia era parteira competente e muito mais confiável do que os médicos do hospital municipal, que tinham outros doentes para atender e não teriam com ela o cuidado que o bebê merecia.

Longe do que ele e Severina imaginavam, ela estava grávida de gêmeos. Gêmeos! A vida já era difícil sem filhos. Com um seria penoso. Com dois, praticamente impossível. Mas, o que fazer? Roberval era religioso e aceitava com passividade o que Deus lhe enviava. Assim que ela engravidou, os dois até que se alegraram, apesar da miséria em que viviam e das dificuldades que encontrariam para sobreviver dali em diante. Quando Leocádia, após breve exame em Severina, constatou que eram gêmeos, tudo pareceu desabar para ele.

Estranhamente, contudo, Severina abriu um sorriso e o tranqüilizou. Que não se apavorasse. Que tivesse calma e confiança. Tudo se resolveria de uma forma serena e segura para todos, e ela acreditava naqueles que a amparavam e que não os deixariam sós numa hora tão difícil. Para Roberval, Severina se referia a Deus e aos santos da igreja, o que, de uma certa forma, deixava-o um pouco mais calmo e confiante.

E agora, sentado na sala da casinha simples de Leocádia, Roberval orava em silêncio, pedindo a Nossa Senhora do Bom Parto que amparasse sua Severina. Os gritos da mulher retiniam em seus ouvidos, fazendo-o estremecer a cada vez que os ouvia. Ela sofria e parecia que ia morrer. Não era possível uma coisa daquelas. Dona Leocádia lhe dissera que daria conta de tudo, mas ele começava a duvidar. Não seria melhor levá-la ao hospital?

Foi quando as duas pessoas mais improváveis de se encontrar ali assomaram à porta. Um homem e uma mulher, bem-vestidos e perfumados, entraram na saleta mal iluminada e poeirenta. Deram uma olhada de viés para Roberval e se entreolharam com patente desconfiança e desagrado. A mulher, contudo, se adiantou e forçou um sorriso artificial.

– Boa noite – cumprimentou ela, com um sotaque diferente e carregado.

– Boa noite – respondeu Roberval, acanhado.

Os dois se sentaram no sofá ao lado de Roberval, que se encolheu todo, constrangido com a companhia daquela gente. Suas roupas limpas e elegantes faziam-no sentir-se envergonhado e aflito, e ele tentou ocultar o imenso rasgão no joelho da calça. Pensou em lhes perguntar o que faziam ali, mas os gritos de Severina fizeram calar a sua curiosidade.

Levantou-se agoniado e apurou os ouvidos, andando de um lado a outro no pequeno cômodo e olhando, de vez em quando, para o insólito casal. Severina se calou por uns instantes, e ele encarou os dois com ar meio hostil. Afinal de contas, o que aquela gente fora fazer ali, numa noite de tempestade feito aquela, bem na hora em que sua Severina se retorcia de dor e medo? O casal, no entanto, não dizia nada, talvez por não ter o que dizer ou por temer se relacionar com a singular figura de Roberval.

O tempo foi passando, Severina continuava a gritar, e o casal silencioso apenas acompanhava o caminhar solitário e nervoso de Roberval. Até que, em dado momento, os gritos cessaram por completo, e um choro de criança se fez ouvir, seguido por outro, vinte minutos depois. Roberval se atirou ao chão de joelhos, agradecendo a Deus por ter salvado Severina e as crianças.

A porta do quarto se abriu e Leocádia apareceu, não demonstrando surpresa com a presença do casal ali. Roberval se levantou e lançou um olhar súplice à parteira, que balançou a cabeça e chegou para o lado, permitindo que ele entrasse no quarto.

– Está tudo bem? – indagou ele aterrado, e Leocádia ergueu as sobrancelhas, sem responder. – Minha Severina…!

Ele correu para dentro do quarto e aproximou-se da cama, agarrando a mão de Severina com cuidado. A mulher permanecia de olhos fechados, o corpo desfalecido sobre a mancha vermelha do lençol. Roberval olhou para toda aquela sangueira e sentiu um calafrio, balançando a cabeça para afastar o mau agouro. Sangue não precisava ser sinal de morte. Podia ser prenúncio de vida. Afinal, sua Severina perdera tanto sangue para trazer ao mundo aqueles dois pequeninos seres que ajudariam a construir a sua vida dali em diante.

A um canto, deitados em dois bercinhos, os bebês pareciam adormecidos, e Roberval se aproximou, fitando-os com emoção e encanto. Queria pegá-los, mas teve medo de deixá-los cair e limitou-se a passar um dedo sobre suas cabecinhas carecas e rosadas. Gentilmente, procurou afastar as fraldas que os encobriam e espiou ansioso. Eram duas meninas, e em seu coração passou um estremecimento de amor.

Depois desse breve momento de admiração, voltou para perto de Severina, que ainda jazia adormecida sobre a vermelhidão do lençol. Ele apertou a sua mão com um pouco mais de força, e ela entreabriu os olhos, procurando fixá-los no marido.

– Eles nasceram – sussurrou ela. – Nossos filhos nasceram…

Ela se contorceu e começou a gemer. Roberval tentou falar com ela, mas a dor foi-se tornando insuportável, e ela pôs-se a chorar assustada.

– Eu vou morrer, Roberval, vou morrer!

Ele pensou em contestar, mas Leocádia entrou abruptamente, seguida pelo ansioso casal. Embora não lhe agradasse a entrada inconveniente dos dois, não disse nada. Estava muito mais preocupado com Severina do que com os estranhos e pensou que Leocádia estava ali para ajudar.

Ela, porém, aproximou-se dos berços e tomou um dos bebês nos braços, depositando-o no colo da mulher. Em seguida, apanhou o outro e o entregou ao homem, que o segurou meio sem jeito. Roberval ficou embasbacado. Nem ele, que era o pai, ousara pegar as pequeninas. Como é que aqueles dois, que nunca vira antes em sua vida, se atreviam a segurá-las? E depois, o que fazia Leocádia que não socorria sua Severina?

– O que vocês estão fazendo? – indagou ele atônito, interpondo-se entre o homem e a mulher, que já se preparavam para sair. – Larguem as minhas filhas.

O homem olhou para Leocádia como a pedir socorro, e ela afastou Roberval com as mãos.

– Saia, Roberval, depois conversamos – disse rispidamente.

– Depois, nada! Esses dois estão querendo carregar minhas meninas. Não vou permitir. E o que faz você que não socorre Severina? Não vê que ela está sentindo muita dor?

Leocádia olhou de Roberval para Severina e desta para o casal em uma fração de segundos. Balançou a cabeça e fez um muxoxo, acrescentando com crescente impaciência:

– Severina não tem mais jeito. Perdeu muito sangue.

– Perdeu o quê? – prosseguiu Roberval, no seu jeito simples. – Que história é essa, Dona Leocádia? E quem são essas pessoas? O que querem aqui?

O casal, ocultando o nervosismo, se desvencilhou de Roberval e foi saindo pela porta, deixando-o confuso e sem saber se ia atrás deles ou se ficava para socorrer Severina. Decidiu pelas crianças e agarrou o homem pela barra do paletó.

– Onde é que vocês pensam que vão com as minhas meninas?

– Solte-me – retrucou o homem, com uma voz tão fria e ameaçadora que Roberval sentiu medo.

– O que vocês querem? Quem são vocês? O que querem com as minhas filhas?

– Elas não são suas filhas – continuou o sujeito com agressividade. – Não mais.

Tamanho foi o susto que Roberval afrouxou a mão e tapou a boca, esforçando-se para compreender as palavras sem sentido daquele estranho.

– Não são…? – balbuciou. – Mas como? Acabaram de nascer. Minha Severina e eu…

Calou-se de repente e olhou para Severina, que acalmara a agonia e os fitava perplexa.

– Deixe de ser estúpido, homem! – berrou o moço de repente. – Não acha que eu ia me deitar com a sua mulherzinha molambenta, acha?

Roberval não respondeu. Não entendia nada, muito menos o que aquele homem dizia. De seu canto, Severina chorava em silêncio.

– Vamos embora daqui – exigiu a mulher, agora balançando a menina, que começava a chorar, despertando a outra, que chorava também.

O homem começou a se afastar, mas Roberval o segurou novamente.

– Ah! Isso é que não! Ninguém sai daqui com as minhas filhas. Ninguém!

– Você é surdo? – falou a mulher, demonstrando certo receio. – Não o ouviu dizer que elas não são mais suas filhas?

– Isso é um disparate! Pois se Severina acabou de dar à luz agora mesmo…

Buscou o apoio de Severina, que chorava de dor e arrependimento.

– Perdoe-me, Roberval – rumorejou ela. – Eu não devia… Mas não sabia o que estava fazendo…

– Fazendo o quê? O que você fez, mulher?

Severina não conseguia falar. O ventre doía imensamente, e o coração estava estraçalhado. Como dizer a Roberval que dera as meninas a Leocádia, em troca do dinheiro de gente rica da capital? E como fazer agora para mostrar o seu arrependimento e contar a Leocádia que, vendo a indignação e o desespero de Roberval, e ouvindo o choro inocente de suas filhas, mudara de ideia?

– Oh! Meu Deus, o que foi que eu fiz? – lamentou-se ela. – Perdão, Dona Leocádia, perdão! Mas não posso. Não posso me desfazer assim dos meus rebentos.

– Não pode?! – rosnou Leocádia. – Nada disso, menina. Você tem um trato comigo. Vai receber o seu dinheiro conforme o combinado.

– Mas que dinheiro? – berrou Roberval inflamado. – Que história é essa de dinheiro? E desde quando Severina pode pôr preço nas meninas?

– Ela pôs – prosseguiu Leocádia. – E trato é trato. Não pode voltar atrás agora.

– Isso é que não! – exaltou-se Roberval. – Ninguém tira as minhas filhas daqui.

– Eu desisto do trato – contrapôs Severina, entre soluços e gemidos. – Pode ficar com o dinheiro, Dona Leocádia. Não quero mais.

– Nada disso! – objetou a parteira, indignada. – Gastei muito com você, Severina. Ou pensa que aqueles mimos todos saíram de graça?

– Eu devolvo tudo. Vou arranjar trabalho…

– Viajamos de muito longe só para buscar esses bebês – cortou a mulher, com irritação. – Não sairemos daqui sem eles.

– Isso é que não! – grunhiu Roberval irado, agarrando outra vez o homem pelo paletó e tentando tirar-lhe a criança do colo.

– Pare, Roberval! – gritou Leocádia –, vai machucar sua filha.

– Larguem as meninas! – vociferava ele enlouquecido. – Devolvam minhas filhas!

Como não conseguisse resultado com o homem, Roberval o soltou e partiu para cima da mulher, tentando arrancar-lhe a outra menina dos braços. Ela não afrouxou, e a gritaria foi geral. Severina berrava de sua cama, dizendo-se arrependida e implorando que o casal lhes devolvesse as filhas. Leocádia corria de um lado a outro, tentando amparar as meninas, no caso de caírem, e Roberval puxava o bebê ora da mulher, ora do homem, seguindo-se uma balbúrdia e um choro infernais.

– Eu vou chamar a polícia! – berrou Roberval por fim, disparando em direção à porta.

Nem teve tempo de cruzar o portal. Um estampido seco ecoou pelo quarto, e uma bala veloz o atingiu por trás, na altura do pulmão. Roberval estacou a meio, levou a mão às costas, tentando alcançar o foco da queimação, quando novo estampido se ouviu, e outra bala o atravessou impiedosamente, fazendo-o tombar de borco, a boca escancarada e os olhos abertos para a morte.

– Não! – berrou Severina do leito, tentando se levantar. – Não! Roberval, não!

O homem virou para ela o revólver, mas Leocádia o segurou pelo cano, evitando olhar a outra sangueira que empapava a camisa de Roberval.

– Não precisa. Ela não vai sobreviver.

Ele a fitou em dúvida, mas a mulher fez um sinal afirmativo com a cabeça, e ele guardou a arma.

– Vamos embora daqui – ordenou assustada.

Saíram apressados, com Leocádia atrás deles. Protegendo os bebês da chuva, entraram num carro e sumiram na estrada lamacenta, ao mesmo tempo em que Severina, sentindo o sangue entalado na garganta, tossiu várias vezes e vomitou, virando o corpo para o lado e despencando da cama de palha. Silenciou.

SÓ Por Amor












Só não erra quem nasce Deus.

Naquele momento em que Januário deparou com a pequena criatura chorando no berço, algo em seu coração despertou. Acostumado à frieza da sua profissão: assassino profissional, jamais esperou da vida uma recompensa por seus atos cruéis.

No mundo, não há crimes nem pecados, porque estes são apenas a face oculta do bem, que ainda não ganhou da vida a oportunidade de se expressar. Desconhecendo essa verdade, e preso ainda às armadilhas da culpa, Januário defronta-se, um dia, com a maior encruzilhada de sua existência: matar novamente ou deixar-se morrer.

A escolha que ele terá de fazer vai depender da voz de sua própria consciência que, em qualquer caso, vai lhe mostrar que só por amor o homem é capaz de orientar os seus mais primitivos instintos para sustentar a grandeza de sua própria humanidade.

Prólogo

Um silêncio morno e inquietante pairava sobre a noite cálida do sertão. Ao longe, por entre as árvores secas e os arbustos espinhentos, algumas corujas piavam baixinho, atingidas por aquela onda de calor noturno. Mais além, um riacho quase seco esbarrava nas pedras das margens, fazendo ressoar pela madrugada seu murmúrio de dor. Fazia tempo que não chovia, e toda a natureza se ressentia daquela seca.

A noite, porém, era silenciosa. De quando em vez, um gambá mais assustado corria em meio aos gravetos, fazendo-os estalar sob suas patas como fogo crepitando na madeira seca. Entremeados com a fuga dos gambás, ouviam-se passos cautelosos e muito bem direcionados. Devagar, Januário avançava pela escassez da mata. Rosto duro e austero, apalpou a arma na cintura e enxugou o suor da testa. Com a outra mão, apertou o galão de querosene que levava e prosseguiu com um suspiro. Já estava ficando cansado daquela vida. Ia fazer cinqüenta anos, não era mais nenhuma criança. Aquele seria seu último serviço. Diria ao coronel Agostinho que já estava na hora de se aposentar. O que juntara ao longo da vida era o suficiente para que ele e Antônia levassem uma vida tranquila e sem preocupações.

Coronel Agostinho sempre o recompensava bem pelos seus serviços e ainda permitia que ele saqueasse as casas e fazendas mais abastadas, antes de queimá-las. Jóias e pratarias, tudo caía em suas mãos, objetos valiosos que Januário ia vendendo e guardando todo o dinheiro no cofre que mandara instalar por detrás da parede de seu quarto. Apesar da estranheza, a mulher, Antônia não fazia perguntas e se contentava com as desculpas que Januário lhe dava: aqueles eram objetos que coronel Agostinho recebia em paga de algumas dívidas e lhe dava.

Mansamente, aproximou-se do casebre e espiou para dentro, pelas frestas da porta mal cerrada. A sala estava vazia e escura, e ele experimentou a maçaneta. Zé Mário havia descido a trava pelo lado de dentro, e ele não conseguiu entrar. Maldito cabra, pensou. Na certa, já desconfiava do que estava para acontecer. Tentando não fazer barulho, Januário soltou o galão perto da porta e seguiu rodeando a casa, esforçando-se para não emitir nenhum som. Testou a primeira janela, e nada. Estava fechada e dificilmente conseguiria abri-la sem fazer barulho. Passou à segunda. Também estava fechada, mas a aldrava que corria por dentro era visível pelo lado de fora, porque a parte em que as duas bandas da janela se encontravam era muito irregular, produzindo uma folga que deixava abertos vários pedaços na madeira.

Tirou o facão da cinta e enfiou pela fresta, subindo com ele bem devagar, até que a lâmina tocou a aldrava. Com a língua entre os dentes, fez força para cima o mais calmamente possível, e a tranca cedeu, subindo juntamente com a faca. Rápida e silenciosamente, Januário empurrou a janela, guardando o facão de volta no cinto.

Enxugou novamente a testa e colocou as mãos no peitoril. Corpo magro e ágil, não foi preciso muito esforço para saltar. Em poucos segundos, viu-se do lado de dentro da pequenina e tosca sala de Zé Mário. Espiou ao redor, fazendo um reconhecimento do ambiente, tentando acostumar os olhos à penumbra. Assim que identificou o local, pôs-se a caminhar pela sala, evitando os poucos móveis quase amontoados no cubículo. Avistou mais à frente a cozinha e, do outro lado, uma porta entreaberta. Só podia ser ali. Eram os únicos cômodos da casa, e não havia mais onde se enfiar.

Pé ante pé, encaminhou-se para lá. No mais profundo silêncio, empurrou a porta, que se abriu sem qualquer ruído, e entrou no minúsculo quarto. Sem pensar em nada, aproximou-se da cama. Zé Mário e a mulher, Edilene, dormiam profundamente. A seu lado, o rifle de dois tiros jazia em posição de ataque, bem ao alcance de sua mão. O tolo ainda pensava que teria tempo de passar a mão na arma e se defender.

Januário não perdeu tempo. Sacou a arma e fez pontaria, mirando bem na cabeça de Zé Mário. Fez pressão no gatilho, mas a mão começou a tremer e o suor voltou a escorrer-lhe pela testa. Enxugou o rosto novamente, respirou fundo e voltou a mirar. Aquele seria seu último serviço, não tinha mais dúvidas. A idade ia avançando, e ele já não tinha mais a mão segura e firme de outros tempos. Resolveu acabar logo com aquilo. Queria ir embora o mais rápido possível e voltar para os braços de sua Antônia.

O que diria Antônia se descobrisse o modo como ele ganhava a vida? Será que ela era tão ingênua a ponto de pensar que ele trabalhava para coronel Agostinho apenas como seu capataz e guarda-costas? Nunca lhe passara pela cabeça que ele já havia matado centenas? Ao longo de seus quase trinta anos de profissão, já matara muita gente; homens, mulheres e até crianças. Não gostava de atirar em crianças, mas o que fazer? Ordens eram ordens, e se coronel Agostinho mandava, ele obedecia. Seria por isso que Deus o castigara e jamais lhe enviara filhos? Por mais que Antônia fizesse, não conseguia engravidar. O tempo foi passando e, com ele, a vontade de ser pai. Januário queria muito encher a casa de crianças, mas não teve essa alegria e acabou se acostumando. Antônia engolira a frustração e também se acostumara. O que fazer? Deus era quem sabia, dizia ela. Se não lhe mandava filhos, algum motivo havia de ter.

Afastou aqueles pensamentos e voltou a se concentrar no trabalho que tinha que executar. Eram três mortes encomendadas ali. Coronel Agostinho estava de olho naquelas terras, mas o danado do Zé Mário não queria vender. Com a morte do cabra e da família, as terras seriam herdadas pela irmã, que morria de medo do coronel e as venderia sem titubear. Eram muitos acres de fazenda que Agostinho não podia desprezar. Além do mais, era pelas terras de Zé Mário que passava grande parte da água que abastecia as duas fazendas, pois a nascente do regato ficava justamente em sua propriedade.

Sem pestanejar, Januário apertou o gatilho, e um estampido seco ecoou pela noite. Em seguida, voltou a pistola para a mulher e atirou novamente, antes mesmo que ela pudesse gritar ou sequer compreender o que estava se passando. Januário ainda teve tempo de ver a sombra de terror que lhe perpassou os olhos, mas não se comoveu. Aquele era o seu trabalho, era para aquilo que era pago, e, depois de tanto tempo, o medo e as súplicas já não o impressionavam mais.

Com a frieza que lhe era peculiar, virou as costas para a cama onde o casal agora jazia fulminado, tingido pelo sangue um do outro, e dirigiu-se para o bercinho de madeira que ficava do outro lado da cama. Assim que disparara o primeiro tiro, o bebê desatara a berrar e a chorar, bruscamente despertado de seu sono inocente. Impassível, aproximou-se do berço e levantou novamente o trabuco, mirando bem entre os olhinhos da criança. Mais uma vez, pressionou o gatilho e piscou um olho, tentando enquadrar bem o rostinho em sua mira. Os dedos, mais uma vez, começaram a tremer, e Januário baixou a arma por uns instantes. Mas que droga, pensou, estava ficando mesmo velho.

Resoluto, fez pontaria novamente, incomodado com aquela gritaria desenfreada. Mirou de novo o rostinho do bebê e encostou o dedo no gatilho. Por que será que não tinha filhos? – era a pergunta que, naquele momento, fizera novamente a si mesmo. Intimamente, uma voz lhe respondeu: porque assassinos não têm coração, e um coração é o de que as crianças mais necessitam. Era um castigo, não podia deixar de pensar, porque já matara muitas crianças, sem dar ouvidos a seu choro e seus soluços inocentes. Inocentes? Sim, eram inocentes. Januário não gostava de matar os inocentinhos… mas coronel Agostinho mandava, ele fazia.

Subitamente, sentiu a vista turva e percebeu uma umidade morna descendo pelo seu rosto. Será que, além de velho, estava também amolecendo? O que estaria acontecendo com ele? Jamais tivera dramas de consciência. Por que é que agora não conseguia executar um trabalho tão simples? Lutou consigo mesmo e enquadrou novamente o bebê, dizendo para si que era questão de segundos para tudo estar terminado. A criança nem sentiria nada. E depois, era melhor morrer do que viver órfã. E, o que era pior, transformar-se em uma possível arma contra coronel Agostinho no futuro. Porque a criança iria crescer, e não faltariam bocas para sussurrar as desconfianças que pairavam sobre o coronel.

O homem era uma peste danada de rica. Fora assim que conseguira sua fortuna: matando e roubando. Quem se recusava a vender suas terras pelos preços irrisórios que ele oferecia levava chumbo do coronel. Ou melhor, dele, Januário. Era ele quem sempre executava seus servicinhos sujos. Todos desconfiavam, mas ninguém nunca conseguiu provar nada. Januário era cuidadoso e não deixava pistas. As evidências apontavam sempre para o coronel, porque toda vez que alguém morria, sua fortuna e suas posses aumentavam, mas não havia meios de se provar nada. Havia muitos cangaceiros por aquelas bandas, e Januário sempre fazia parecer que os assassinatos eram cometidos pelos bandos de insubordinados que vagueavam por ali. Chegou mesmo a acusar o próprio Lampião de haver assassinado algumas pessoas para vingar ofensas aos membros de seu bando. Era mentira? Todo mundo sabia que era. Mas quem é que se atreveria a contestar ou acusar um homem tão poderoso e temido feito coronel Agostinho?

Só o doutor delegado. O doutor Conrado bem que tentava, mas não conseguia enquadrar o homem em crime nenhum. Quem via alguma coisa não falava, e Conrado jamais pôde reunir provas contra o coronel ou contra ele, Januário. Por isso ainda continuava vivo. O delegado era uma ameaça, mas coronel Agostinho também sentia medo dele. O homem era filho de um desembargador importante da capital, e matá-lo poderia custar-lhe muitas investigações. Agostinho preferia não arriscar. Enquanto Conrado não conseguisse incriminá-lo, nada faria contra ele.

Com isso, Januário também estava seguro, porque o delegado, por mais que se esforçasse, não conseguia pôr as mãos nele também. Chegava sempre perto, mas a ausência de provas o impedia de prendê-lo. Era, por isso, obrigado a engolir a frustração e via o jagunço circulando livre pela cidade, sem que pudesse fazer nada para detê-lo.

Januário deixou de lado esses pensamentos e fixou os olhos no bebê que, agora mais cansado, parara de chorar e soluçava baixinho. Que idade teria? Pelo jeito e pelo corpinho magro, não devia ter mais do que três meses. Que pena, pensou. Um bebê tão bonitinho! Mas ele também precisava morrer. Foram as ordens de coronel Agostinho, e ele tinha que cumprir. Decidiu não pensar em mais nada e dar por encerrada aquela questão. Apontou novamente a arma para a criança, e sua mão, como das outras vezes, começou a tremer. Segurou o braço com a outra mão e fez pontaria, sentindo o suor escorrer de novo, misturado às lágrimas que sabia escorrerem pelas faces.

– Não posso! – chorou amargurado, deixando os braços caírem ao longo do corpo. – Deus, por quê? Por que não posso matar esta criança?

O neném, assustado, recomeçou a chorar, e Januário, mais que depressa, guardou a arma de volta na cintura e estendeu os braços para o berço. Com cuidado, retirou-o de sua caminha e estreitou-o contra o peito, batendo de leve em suas costinhas. O bebê, reconfortado, aquietou o pranto e acabou adormecendo. Vagarosamente, Januário saiu com ele. A alguns metros da casa, deitou-o no chão e falou carinhosamente.

– Não se apoquente. Tenho que terminar um trabalho, mas já volto para buscá-lo.

A passos largos, correu para onde deixara o galão e o abriu, espalhando o querosene por toda a casa, embebendo portas e janela, móveis e utensílios. Esvaziado o galão, atirou-o para o meio da sala e voltou para a porta, dando uma espiada no bebê, que permanecia quieto, no mesmo lugar em que o deixara. Maquinalmente, riscou o fósforo e atirou-o para dentro, correndo o mais que pôde. Em frações de segundos, as labaredas subiram aos céus, lambendo a casinha com fúria devastadora.

Januário apanhou a criança e ficou olhando o incêndio, sentindo que o calor da noite se intensificava sob as línguas de fogo. Esperou até que toda a casa estivesse tomada pelas chamas e só então virou as costas, trilhando de volta o mesmo caminho que percorrera para chegar até ali. Adiante, oculto entre as árvores e as sombras, seu cavalo o aguardava. Segurando o bebê adormecido com uma das mãos, Januário montou e esporeou o animal, partindo para casa em disparada.

Quando chegou, a madrugada corria alta, e Antônia ressonava na cama, a luz do abajur acesa e um bordado inacabado pousado sobre o colo. Januário aproximou-se dela rapidamente e a sacudiu, falando num quase desespero:

– Antônia! Pelo amor de Deus, Antônia, acorde!

Antônia passou a língua nos lábios e pigarreou, abrindo os olhos lentamente. Estreitou a vista por uns instantes, em busca de compreensão para o que estava vendo. Parado diante dela, estava seu marido. Isso não era nada demais. O estranho, porém, era que trazia um bebê no colo. Será que estava sonhando? Piscou várias vezes, na esperança de que o sonho se desvanecesse, mas ele continuava ali. Foi só quando Januário pousou o bebê a seu lado e começou a andar pelo quarto, falando e gesticulando feito louco, que ela realmente compreendeu o que estava acontecendo.

– Januário! – exclamou atônita. – O que é isso? Posso saber o que está acontecendo?

– Então você não vê, mulher? É uma criança. Um bebê…

– Isso eu sei. Mas o que é que ele está fazendo aqui?

– Não há tempo… – respondeu balbuciante, abrindo a porta do armário e retirando as roupas lá de dentro, jogando-as todas em cima da cama. – Precisamos nos apressar.

– Apressar? Para quê?

– Vamos, Antônia, levante-se daí e arrume nossas coisas. Vamos embora.

– Embora? Como assim? O que aconteceu?

– Não faça perguntas! Precisamos sair daqui com urgência. Fiz uma loucura… E quando o coronel Agostinho descobrir, vai ser o meu fim!

– Mas que loucura? O que foi que você fez? – vendo o bebê se mexendo a seu lado na cama, completou aterrada: – Não vá me dizer que você roubou essa criança! Foi isso, Januário? Você tirou a criança da mãe?

– Não…

– Mas então, como é que ela veio parar aqui?

– Não faça perguntas agora. Mais tarde, explicarei tudo. Agora, precisamos fugir. Por Deus, Antônia, quer que essa criança morra?

– Não… mas por que morreria?

– Levante-se daí, mulher! Será que você não pode se calar um minuto e me obedecer? Precisamos sair daqui o quanto antes ou, não só a criança vai morrer, como nós também!

Sentindo a gravidade na voz do marido, Antônia obedeceu. Levantou-se rapidamente e correu a apanhar as malas.

– Para onde vamos? – indagou preocupada, enquanto enfiava nas malas as roupas que podia.

– Ainda não sei. Pegue o que puder. O que não der para levar, deixe por aí.

– Deixar por aí? Vamos abandonar nossa casa, nosso lar, tudo por que lutamos durante todos esses anos, com tanto sacrifício?

Januário fitou-a com desgosto e retrucou angustiado:

– Não foi com sacrifício. Não com o nosso.

– Não entendo… O que quer dizer com isso?

Ele terminou de esvaziar o cofre por detrás de um quadro na parede e aproximou-se dela, segurando-lhe as mãos e olhando-a bem fundo nos olhos.

– Outro dia – começou, visivelmente transtornado –, um outro dia, Antônia, vou lhe contar tudo. Mas agora não. Agora, só no que consigo pensar é em salvar nossas vidas.

Uma estranha sensação arranhou o coração de Antônia, mas ela não disse nada. Apenas meneou a cabeça e continuou a arrumar suas coisas.

– E o bebê? – tornou, olhando para a criança adormecida. – Trouxe as coisas dele?

– Comprar-lhe-emos algo no caminho. Ele está dormindo, não dará problemas.

– Mas é muito pequenino. Ainda deve mamar no peito. Logo, logo, vai acordar, berrando de fome. O que lhe daremos?

– Vou apanhar leite na geladeira e vamos levar.

– Mas ele não sabe beber na garrafa!

– Daremos um jeito! Pelo amor de Deus, Antônia, vamos embora!

Antônia se calou e terminou de arrumar suas coisas, que Januário foi levando e ajeitando na carroça. O automóvel moderno que comprara, achou melhor não levar. Automóveis daquele tipo não eram comuns por ali, e o seu seria de fácil localização. Não. Apesar do desconforto, a carroça ainda era mais segura.

Enquanto isso, Antônia foi se sentar ao lado do bebê, admirando-lhe o rostinho adormecido. Quando Januário entrou de volta no quarto, para apanhar outras malas, ela perguntou curiosa:

– É menino ou menina?

Januário estacou e olhou para a mulher. Nem se preocupara com aquilo.

– Não sei – resmungou cabisbaixo. – Não tive tempo de olhar.

Ele saiu esbaforido, e ela, com cuidado, afastou as roupinhas do neném. Quase sem tocá-lo, abriu-lhe a fralda. Era uma menina.

– É menina! – falou entusiasmada, quando Januário chegou de volta.

– Ótimo – respondeu ele secamente. – É menina. Agora apanhe-a e vamos embora. Quero partir antes do amanhecer.

Sem dizer nada, Antônia ergueu a menina no colo e saiu apressada atrás do marido. Januário trancou a casa toda. Esperava que, quando o patrão desse pela sua falta, eles já estivessem longe. Afinal, era costume ele sumir por uns tempos depois de serviços grandes feito aquele.

Ao colocar os cavalos em movimento, Januário nem imaginava ainda que rumo iria tomar. Só o que sabia era que queria estar bem longe de Pedra Branca, aquela ridícula cidadezinha esquecida no interior do Ceará. Achou melhor seguir para Senador Pompeu e, de lá, apanhar um trem para o sul. Chegando à pequenina cidade, procuraram uma estalagem razoavelmente tranqüila e se hospedaram com nomes falsos. Logo em seguida, Januário saiu em busca de fraldas e uma mamadeira. Voltou pouco depois, trazendo a mamadeira e uma garrafa de leite fresco.

– Enquanto você a alimenta, vou comprar passagens para o sul – disse para a mulher.

– Não é seguro pegarmos a direção de Fortaleza.

Antônia sorriu, enquanto oferecia a mamadeira ao bebê, que chorava esfomeado. Imediatamente, a menina se acalmou, e Antônia ficou à espera de que Januário voltasse. Quando ele retornou, trazendo nas mãos as passagens de trem, ela o fitou com uma interrogação no olhar. Para Januário, não havia mais como fugir; era hora de lhe contar toda a verdade, e a verdade era que ele salvara a criança de um incêndio que ele mesmo provocara. Antônia ficou chocada, mas Januário prosseguiu. Se ela realmente o amasse como dizia amar, saberia compreendê-lo e aceitar. À medida em que Januário ia lhe narrando os episódios funestos de sua vida de crimes, Antônia ia empalidecendo mais e mais, o horror estampado em seus olhos vivos. Contou tudo, desde quando se iniciara naquela vida, até os momentos que antecederam a sua fuga, após ter matado Zé Mário e Edilene e fugido levando a menina, com medo da violenta reação de coronel Agostinho. Quando ele terminou a narrativa tenebrosa, ela estava chorando.

– Vai me condenar e me abandonar? – perguntou Januário, temeroso.

– Não… – balbuciou ela, entre lágrimas.

– Entende que fiz isso por nós?

– Não, não entendo, embora, em meu íntimo, já desconfiasse de algo. Só não queria enxergar.

Januário não conseguia desviar dela os seus olhos súplices e então indagou:

– O que pretende fazer?

Com um suspiro de dor, ela respondeu mansamente:

– Nada, não pretendo fazer nada. Temos agora uma filha para criar.

Com imenso alívio, Januário correu e a abraçou, mal conseguindo conter a emoção.

– Antônia… minha querida Antônia…

Ela, porém, repeliu o seu abraço e completou com voz firme:

– Prometa-me antes, Januário, que nunca mais irá matar novamente.

– Como posso lhe prometer isso?

– Vamos iniciar vida nova. Você, eu e a criança. Quero que você se transforme num novo homem. Do contrário, nem todo o amor que sinto irá me prender junto a você. Agora que sei, não posso conviver com a morte.

– Mas Antônia, entenda… Sou um matador!

– Você vai ter que escolher. Ou fica comigo, ou com a sua vida de jagunço. As duas coisas, não pode ter.

– É isso o que você quer? – suspirou, entre a contrariedade e a resignação.

– Sim. Essa é a condição para que continuemos juntos.

– Então está certo, se é o que vai fazê-la feliz. De qualquer forma, já estou ficando mesmo cansado dessa vida.

Agora sim, ela o abraçou comovida. Como o amava! Tanto que nem os seus horrendos crimes seriam capazes de destruir o seu amor. A criança, talvez atingida pela carga de emoção do momento, despertou faminta e aos berros, e Antônia se soltou de Januário, indo preparar-lhe outra mamadeira. Terminou de alimentá-la e deu-lhe um banho morninho, colocando-a para dormir em seguida. Depois que ela pegou no sono, pediram comida no quarto. Não queriam se expor em lugares muito movimentados. Na manhã seguinte, bem cedo, partiriam novamente.

– Para onde é que vamos? – quis saber Antônia. – Já decidiu?

Januário deu-lhe um sorriso amável e exibiu-lhe as passagens de trem.

– Para o Rio de Janeiro – respondeu com uma certa euforia. – Vamos de trem até Juazeiro e, de lá, tomaremos um ônibus para o Rio. Eu, você e nossa pequena Marisa…

Voltou o rosto antes que a mulher pudesse contestar o nome que ele escolhera para a menina que, dali para a frente, seria a sua filhinha. Antônia, porém, não demonstrou contrariedade. Sabia que Marisa era o nome de uma irmãzinha de Januário que morrera ainda bebê, e aceitara a idéia de coração. Era um nome bonito e gracioso, tal qual sua filha seria dali em diante. Sua filha e de Januário. De mais ninguém…


Lembranças que o Vento Traz












Sem a convivência com o próximo, as experiências cairiam no vazio, porque ninguém aprende dando e recebendo só de si e para si.

Este é o final da trilogia que se iniciou com o livro Sentindo na Própria Pele, passando por Com o Amor Não se Brinca até chegar a este, Lembranças que o Vento Traz, que encerra a história da família Sales de Albuquerque e da escrava Tonha, que a ela se ligou por laços de amor e ódio do passado.

A vida nos ensina muitas coisas. Tudo aquilo que nosso coração teima em não enxergar, a vida coloca diante de nós, para que possamos empreender uma autorreflexão e modificar atitudes que não condizem mais com a nossa necessidade de evolução.

Assim é com Clarissa. Desde sua saída do então próspero Vale do Paraíba, até a ida para a distante e isolada Cabo Frio, a vida vai tentando mostrar-lhe a necessidade de desapego do orgulho como forma de facilitar o seu crescimento espiritual.

Mas se desapegar nem sempre é tão fácil, por causa das Lembranças que o Vento Traz.

Capítulo 1

Assim que os passarinhos começaram a piar do lado de fora, Clarissa despertou contrariada, espreguiçou-se, esfregou os olhos e olhou pela janela. Mais um dia de tédio na fazenda São Jerônimo, mais um dia sem nada de novo para fazer. À exceção de seu irmão Luciano e de sua prima Jerusa, não havia ninguém mais com quem conversar. A irmã mais velha, Valentina, era uma autoritária intrometida e andava ocupada demais com o bebê.

Clarissa ouviu batidas na porta e disse, sem maior interesse:

– Pode entrar.

A porta se abriu e a mãe entrou, cumprimentando-a com um sorriso:

– Bom dia, Clarissa.

– Bom dia, mamãe. Alguma novidade?

– Por que pergunta?

– Para a senhora vir ao meu quarto logo pela manhã, com certeza, algo de novo aconteceu.

– Você é muito esperta.

– Papai já voltou da capital?

– Ainda não.

– Então, o que é?

Ela olhou para a filha com ar divertido e anunciou:

– Sua encomenda acaba de chegar…

Nem era preciso ouvir o resto. Clarissa saltou da cama e jogou o xale sobre os ombros, descendo a escada às pressas e correndo para a sala. Logo que entrou, viu uma caixa grande perto da janela e pôs-se a saltitar de alegria. Completamente inebriada, começou a desatar nós e a puxar tábuas, tentando abrir a caixa o mais rápido que podia. Mas a madeira era dura, e ela não conseguia. Imediatamente, começou a gritar:

– Luciano! Luciano! Pelo amor de Deus, venha me ajudar!

Ouvindo aqueles gritos, o irmão apareceu esbaforido, seguido da outra irmã, que trazia no colo um bebezinho de meses.

– Mas o que é que está acontecendo aqui? – indagou ele, indignado.

– Veja, Luciano! – exclamou Clarissa, apontando para a caixa. – Papai cumpriu a promessa e me mandou o que lhe pedi! Venha, ajude-me a abrir!

Flora, a mãe, permanecia parada mais atrás, enquanto o filho ajudava Clarissa a abrir aquela caixa imensa. Estava muito bem atada e amarrada, e foi preciso buscar algumas ferramentas para soltar os pregos. Poucos minutos depois, as tábuas começaram a ceder, e Clarissa as ia puxando, cheia de excitação. Um cravo novinho em folha surgiu no meio de pedaços de madeira cerrada, e Clarissa bateu palmas de contentamento, alisando as teclas com os dedos longos. No mesmo instante, as cordas lá dentro ressoaram, e uma melodia suave invadiu o ambiente. Era maravilhoso!

– Onde será que papai arranjou dinheiro para comprar isso? – indagou Valentina, com desdém.

– Não seja desmancha-prazeres, Valentina – censurou a mãe. – Seu pai não prometeu? Então? Cumpriu a promessa.

– Todos sabemos que a nossa situação não é lá das melhores. Ontem nem tínhamos dinheiro que chegasse para as despesas, e hoje me aparece aqui esse cravo, vindo da capital, que deve ter custado uma pequena fortuna. Veja essas teclas. São de marfim!

– Qual o problema? – retrucou Clarissa. – Aposto que você está é com inveja.

– Não sei por que teria inveja de você, menina tola.

– Porque você não sabe tocar. Nunca conseguiu aprender.

– E quem disse que quero aprender?

– Parem com isso, meninas – ordenou Flora. – Não há motivo para brigas. O que importa é que seu pai comprou o cravo, não foi? E, com certeza, não precisou roubar nem extorquir nada de ninguém. Ou será que você pensa que seu pai virou ladrão de repente, Valentina?

– Não penso nada disso – respondeu Valentina de má-vontade. – Só acho que papai mima demais essa menina. Ele faz todas as vontades de Clarissa.

– E qual o problema? – tornou Clarissa, de forma desafiadora.

A criança no colo de Valentina pôs-se a chorar, e Flora considerou:

– Valentina, minha filha, creio que já está na hora de alimentar o bebê.

A contragosto, Valentina saiu da sala e foi para o quarto dar de mamar à filha. Depois que ela saiu, Clarissa e Luciano puseram-se a montar o cravo, encaixando o corpo sobre os pés. Tudo pronto, Clarissa puxou o banquinho e sentou-se para tocar. Estava afinadinho, e ela tencionava preparar um concerto para quando o pai voltasse.

Retribuiria o presente com outro, tocando para alegrar seus ouvidos. Flora sentou-se no sofá e ficou a admirar a filha. Ela era linda e meiga, apesar de um pouco voluntariosa e até mesmo atrevida. E como gostava de música! Clarissa saíra a ela.
Quando Flora se casou com Fortunato, ele permitiu que ela levasse o cravo que fora de sua mãe, e logo que os filhos alcançaram idade suficiente para aprender, pôs-se a ensiná-los. Mas Valentina não levava jeito. Não tinha ouvido e não se interessava em aprender. Luciano, por sua vez, era muito irrequieto e não tinha paciência para ficar longas horas sentado, o que lhe dificultava a concentração.

Apenas Clarissa se interessara. A menina, desde cedo, demonstrava um dom musical inato e ficava horas e horas entretida com a música, sem nem se lembrar das brincadeiras. Havia ocasiões em que vinha a prima da fazenda Ouro Velho, e faziam então lindas reuniões, com ela e a filha revezando-se ao cravo. Mas, por infortúnio, cerca de um ano antes, alguém deixara aberta a janela da sala, sob a qual ficava o instrumento, justo na época em que haviam ido em viagem à capital, a fim de assistir ao casamento de um parente distante. Era época das chuvas, e um temporal se abateu sobre a região. Pela janela escancarada, a chuva penetrou aos borbotões, encharcando móveis, tapetes e também o cravo. Quando voltaram da viagem, toda a mobília estava estragada, os tapetes manchados e a madeira do cravo inchada e cheirando a mofo. Clarissa e Flora chegaram a chorar de desgosto. Além do prejuízo, a perda do instrumento amado parecia-lhes irreparável. Mas Fortunato lhes prometera: assim que pudesse, mandaria vir um instrumento da capital, mais bonito e mais sonoro, último modelo na Europa.

Clarissa encheu-se de esperanças e não via a hora de receber o seu presente. No entanto, a situação das fazendas tornou-se preocupante. Toda a última safra fora perdida em virtude de uma praga fatal que atacara a plantação. Por mais que tentassem, os fazendeiros não conseguiam contê-la e, em pouco tempo, a devastação foi total. Seu pai perdera praticamente tudo, assim como seus parentes da fazenda Ouro Velho e alguns fazendeiros mais próximos. Dizia-se que o descuido e o desleixo do senhor Américo, proprietário de uma fazenda vizinha, acabara por trazer a praga, que em breve se alastrou pelas terras contíguas. A muito custo conseguiram exterminá-la, mas os prejuízos, além de incalculáveis, foram também irreversíveis.

Destruída a plantação, só o que lhes restava fazer era recomeçar. Mas como? Fortunato perdera quase todos os seus pés de café. Era preciso dinheiro para comprar novas sementes, plantá-las novamente e esperar que crescessem e frutificassem. Tudo isso levava tempo, e o dinheiro que possuíam não bastaria para agüentarem tanto. Por fim, convencido de que suas reservas não seriam suficientes para custear a plantação e a subsistência até a nova safra, Fortunato partiu para a capital, na tentativa de conseguir um empréstimo junto aos banqueiros. A situação era precária, mas Fortunato gozava de prestígio, o que, certamente, lhe facilitaria a obtenção do empréstimo.

Vendo o cravo que o marido enviara a Clarissa, Flora concluiu que ele conseguira o dinheiro e começara a gastar por conta. Estava feliz, sim, mas, pensando melhor, talvez Valentina tivesse razão. Seria prudente gastar tanto dinheiro por conta de uma safra que ainda nem existia? Uma sombra de preocupação passou pela sua mente. O marido, além de excelente negociante, era um homem prudente e comedido, e jamais contaria com algo que ainda não era, verdadeiramente, seu. Onde teria então conseguido aquele dinheiro? Será que vendera alguma propriedade? Era possível, mas todos os seus bens encontravam-se ali, naquelas duas fazendas, além de alguns poucos imóveis na capital, cuja renda dos aluguéis não era suficiente para cobrir-lhes todas as despesas. Estavam acostumados ao luxo e à riqueza, e não era fácil se contentarem com uma vida de economias e privações.

Jovem e sonhadora, Clarissa permanecia alheia a tudo isso. Os problemas financeiros da família não lhe diziam respeito. Se o pai lhe enviara o cravo, com certeza conseguira o dinheiro de alguma forma honesta. Além de Valentina, Luciano também estranhou. Ele amava muito a irmã mais nova e não queria estragar sua alegria, mas ficou seriamente preocupado com aquele cravo luxuoso. No entanto, preferiu não dizer nada. A mãe também parecia feliz, e ele não queria estragar tanta felicidade.

No dia seguinte, bem cedo, terminado o café da manhã, Valentina se levantou, entregou o bebê para a criada e perguntou:

– Trouxe as flores que lhe pedi?

– Sim, senhora. Estão no vaso, em cima da mesa da sala.

– Ótimo. Agora leve a menina para tomar sol. Mas cuidado, não vá esquecê-la lá fora.

– Pode deixar, dona Valentina, não esqueço, não.

Valentina levantou-se, foi até a sala de estar e apanhou as flores. Voltou à mesa do café, onde os demais permaneciam sentados, entretidos em animada prosa, e indagou:

– Vocês não vêm?

– Aonde? – retrucou Luciano.

– Hoje faz dois anos que vovô Rodolfo faleceu.

– Faz, é? – continuou o irmão.

– Faz, sim. Vou ao cemitério levar-lhe umas flores. Para ele e vovó Marta, que Deus os tenha.

– Faz muito bem.

– Vocês não vêm comigo? É dever da família velar pela memória de seus antepassados.

– Não creio que precise ir chorar sobre o túmulo de meus avós para me lembrar deles – objetou Clarissa. – E, se quer mesmo saber, vovô Rodolfo nem era tão bom assim.

– Você é uma menina atrevida e mal-educada, Clarissa, e devia se envergonhar de falar assim de nosso avô, que tudo fez por nós.

– O que foi que ele fez por nós além de nos recriminar por qualquer coisa? Não me lembro de nada que tenha feito para nos agradar. Já vovó Marta, não. Era meiga, atenciosa, amiga…

Valentina engoliu em seco e revidou:

– Você é uma ingrata, isso sim, e é melhor mesmo que não vá. – E, virando-se para o irmão, perguntou: – E você, Luciano, não vem?

– Quem, eu? Ah! não, não conte comigo. Tenho mais o que fazer. Concordo com Clarissa. Não precisamos nos debruçar sobre a sepultura deles para nos lembrarmos de que existiram.

– Vocês dois são impossíveis. Não é à toa que se dão bem. São iguaizinhos: egoístas, malcriados, desrespeitosos…

– Está bem, Valentina, agora chega – cortou Flora. – Deixe seus irmãos em paz. Eu irei com você.

Flora pegou o xale e saiu em companhia da filha. Ela também não gostava muito do sogro. Ele fora um homem aborrecido e irascível, e vivia esbravejando e xingando. A sogra, contudo, era diferente, e todo mundo gostava dela. Marta fora uma mulher boa e piedosa, e vivera uma vida de abnegação ao lado do marido, sempre disposta a auxiliá-lo e a fazer tudo por ele. Só ela era capaz de controlá-lo. Rodolfo sempre tivera um gênio terrível, e a esposa era a única a quem ele dava ouvidos.

Mas se Valentina gostava do avô, o que podia ela fazer? Afinal, tinham o mesmo sangue, e ela era bem parecida com ele. Sempre fora. O mesmo temperamento, as mesmas crenças, os mesmos ideais. Não era por outro motivo que Valentina sempre fora a preferida do avô, ao contrário de Clarissa e Luciano, com quem ele vivia a implicar e repreender.

Giselle. A Amante do Inquisidor




Ninguém deve nada a ninguém, a não ser a si mesmo.

Na Espanha, no tempo da Inquisição, quando o poder da Igreja era quase absoluto, um inquisidor, em sua luta para obter mais poder, e a pretexto de “salvar as almas do pecado”, pratica toda sorte de crimes. Sua amante, uma linda e ambiciosa mulher, une-se a ele, urdindo ciladas para as pessoas a quem ele deseja condenar.

Assim ela tornou-se cúmplice dos crimes que o amante praticava. Encontrou, porém, um homem que despertou nela um grande amor, inspirando-a a mudar de vida.

Haveria tempo para ela fazer isso ou seria tarde demais?

Você encontrará a resposta na emocionante história de Giselle – a amante do inquisidor.

Prólogo

À medida que a chuva desabava pesada e grossa, Giselle subia a colina verdejante e escorregadia, parando por vezes para enxugar as pequeninas e abundantes gotas de suor, misturadas aos pingos da chuva que desciam pelo seu rosto cansado. O vento soprava insistente e veloz, fazendo com que o corpo de Giselle envergasse para trás, dificultando-lhe a caminhada. Ao longe, trovões ribombavam furiosos, acompanhando os raios que faiscavam no céu tempestuoso. Efetivamente, Giselle estava no meio de uma tormenta e não tinha certeza se conseguiria seguir adiante.

Em dado momento, parou e olhou para baixo, espantada com o tanto que já havia subido, sem nem se dar conta. Suas pernas começavam a doer, talvez em função do sofrimento que lhes fora impingido, e uma forte exaustão começou a tomar conta de todo o seu corpo. Só agora seus músculos e ossos se ressentiam de tudo por que já haviam passado.

Mas não podia desistir. Não agora. Diego lhe dissera que aquele era o caminho. Do outro lado da colina, o mar lhe acenaria com a liberdade. Abaixou a cabeça, contendo as lágrimas, e avançou mais um pouco. Não faltava muito agora, e tinha que prosseguir. Já perdera muito em sua vida, mas precisava viver. Devia isso a Ramon, que morrera para não ter que matá-la.

Parou por instantes, olhos enevoados pelo pranto e pela chuva, e tornou a subir. Sentia-se só e desamparada. Mais até do que quando estivera presa. Ramon estava morto, e ela não podia mais contar com Esteban. Ele a abandonara. O homem que fora o primeiro amante em sua vida, e a quem chegara a amar como pai, virara-lhe as costas covardemente. Ou será que tinha algo a ver com tudo aquilo? Teria sido Esteban quem a delatara e depois, por medo e covardia, não ousara mais encará-la? Não sabia ao certo. Por diversas vezes Esteban a alertara de que, se ela fosse presa, nada poderia fazer para salvá-la. Não. Ele não a traíra. Acovardara-se, temendo manchar seu nome e sua reputação. Mas não acreditava que houvesse sido ele o autor daquela denúncia infame.

Finalmente, alcançou o topo da colina e ficou estarrecida com a visão do outro lado. Era uma encosta íngreme e rochosa, nada parecida com a grama verdejante por onde acabara de subir. Ao fundo, um imenso mar de águas revoltas se chocava contra as pedras, jogando a espuma branca a muitos metros de distância. A maré ia e vinha numa cadência aterradora, como se quisesse sugar todos os grãos de areia, as pedrinhas e as conchas que, inutilmente, lutavam para se agarrar nas pedras incrustadas no chão arenoso.

Por alguns momentos, Giselle ficou parada no alto da colina, paralisada ante aquela visão. Como é que Diego pretendia que ela entrasse naquele mar? O tempo não a estava ajudando e havia encapelado o mar de tal forma que seria praticamente suicídio aventurar-se por aquelas ondas. As vagas eram gigantescas e se chocavam com violência contra as pedras, arrastando qualquer coisa que se insinuasse por ali.

Durante alguns minutos, permaneceu estudando o local. As ondas não conseguiam chegar até o pé do rochedo, perdendo força poucos centímetros antes. Mas seria uma travessia arriscada até a ponta do promontório, onde Diego lhe dissera que haveria um barco à sua espera.  Giselle teria que conter o medo ante as gigantescas muralhas de água que as ondas formariam bem diante de seus olhos.

Inspirou profundamente, tomando coragem, e pôs-se a descer, quase que rastejando pelas rochas. Ao menos, parara de chover. Apesar de íngreme, a descida não era tão difícil como pensara, pois havia uma espécie de trilha natural marcando o caminho por onde deveria passar. Em poucos instantes, alcançou a praia. Não era propriamente uma praia, mas uma estreita faixa de terreno arenoso e, mais à esquerda, as pedras que separavam a terra do mar. Subindo por elas, chegava-se a um caminho apertado e pedregoso, ladeando o penhasco e protegido pelas rochas à frente, que terminava num cabo largo e alto, fazendo como uma plataforma adentrando o mar. Se conseguisse chegar ao final da montanha, teria que dar um jeito de subir pelas pedras e se abrigar na plataforma, onde então ficaria à espera do barco que a iria resgatar.

De um lado e de outro, imensas paredes de pedra, com uma espécie de gruta mais ao fundo. Aquilo mais parecia uma garganta. Giselle ficou pensando que seria muito fácil armar-se uma emboscada ali e começou a sentir medo. Por que é que Diego a enviara para um lugar tão perigoso? Não teria sido mais fácil marcar o encontro numa praia mais afastada? Mas ele dissera que não, que seria arriscado. Miguez então já teria descoberto a fuga e teria colocado todos os soldados em seu encalço. E depois, como é que ele poderia prever aquela tempestade?

Mesmo assim, algo não lhe soou bem. Olhando para a ponta do cabo, ficou pensando que barco conseguiria chegar até ali com aquele tempo. O mar estava muito revolto, era mesmo uma ressaca impiedosa. Que embarcação se atreveria a se aproximar das pedras com aquelas ondas, arriscando-se a ser atirada contra as rochas e naufragar?

Apurou os ouvidos, tentando escutar algum som. Nada. Não ouvia nada, a não ser o barulho do vento e das ondas estourando com violência nas pedras. Começou a ficar nervosa, pensando no que deveria fazer. Subitamente, a ponta de um barco surgiu por detrás do morro, e Giselle suspirou aliviada. Era um barco pequeno, e ela imaginou que a nau que a levaria embora deveria estar ancorada um pouco mais além, fora da influência daquela maré traiçoeira. Não sabia como faria para alcançar o barquinho, mas imaginou que alguém deveria lhe jogar uma corda ou algo parecido, puxando-a para bordo antes que as vagas a atirassem contra as rochas do cabo. De qualquer forma, teria que saltar no mar.

Não teve tempo de pensar em muita coisa. Enchendo-se de coragem, deu dois passos em direção às pedras. Ia começar a subir quando ouviu um crek do outro lado. Olhou na direção daquele ruído e estacou abismada. Do fundo escuro da gruta, dezenas de homens apareceram, apontando para ela suas espadas ameaçadoras.

Giselle não teve dúvida. Agarrou-se às pedras o mais que pôde e começou a subir, rezando para chegar ao barco antes que os soldados a alcançassem. Quando ergueu os olhos, outra surpresa. Ao invés do barco se aproximar do promontório, começou a se afastar em direção ao alto-mar, e foi então que ela compreendeu tudo. Diego a traíra. Esperara até que ela lhe revelasse onde escondera seu tesouro, facilitara-lhe a fuga e a entregara a Miguez.

Ficou desesperada. Não havia para onde fugir. Pensou em voltar pelo mesmo lugar por onde viera, mas não havia tempo. Os homens se aproximavam cada vez mais e conseguiriam facilmente detê-la naquela subida íngreme. Não tinha escolha. Ou ia avante, ou seria capturada e morta.

Começou a subir pelas pedras, em direção à parede do penhasco, rumo à ponta do cabo. Quem sabe não poderia atirar-se ao mar e nadar até o outro lado da montanha? Não sabia o que encontraria lá, mas deveria haver uma praia ou uma baía. Quando atingiu o caminho que circundava o morro, ergueu o corpo e levantou os olhos mais uma vez. Sentiu medo.  Tanto medo que pensou que fosse desmaiar. Vistas de baixo, as ondas pareciam ainda maiores e engoliam as pedras com uma fúria sem igual, respingando o caminho por onde ela teria que passar. Se fosse apanhada por uma onda, ser-lhe-ia impossível escapar.

Mesmo apavorada, seguiu em frente. Era sua única saída. Os homens de Miguez também já começavam a subir nas pedras e logo a alcançariam. Uma onda estourou a poucos centímetros, e o repuxo quase a arrastou, mas ela conseguiu se sustentar e correr. Giselle deu um passo trôpego para junto da parede de pedras, colando o corpo a ela e experimentando nas pernas a friagem da água. Coração aos pulos, sentiu na pele a iminência da morte.

Os soldados pareciam temerosos e recuaram, hesitando em seguir avante. Era loucura demais. Estacaram onde estavam e ficaram apenas olhando, como se esperassem que algo acontecesse e a levasse de volta para eles. Sem lhes prestar mais atenção, Giselle, corpo ainda colado nas pedras frias do penhasco, foi se arrastando lentamente, sentindo as pernas tremerem com o estrondo das vagas diante de seus olhos.

Já ultrapassara a metade do caminho quando ouviu um novo alvoroço. Olhou novamente para a praia e notou que os homens haviam recuado e que outros se aproximavam. Giselle percebeu que eram arqueiros. Iam atirar nela! Com o corpo trêmulo, começou a chorar e continuou se arrastando, tentando não encarar as ondas que se agigantavam diante de seus olhos, avançando cada vez mais por cima das pedras à frente, que agora começavam a declinar para dentro da água cinzenta.

A primeira flecha passou zunindo pelo seu ouvido e quase a acertou, mas foi desviada a tempo pela ventania. Os arqueiros, porém, não se deram por vencidos. Armaram-se novamente e tornaram a atirar, mas as flechas não conseguiam alcançá-la, perdendo força ante o vento que soprava em direção contrária. Sua pele já estava ferida e sangrando, esfolada que fora pelas rochas pontiagudas do penhasco. Giselle parecia nem sentir a dor. Depois de tudo por que passara, até que aquilo não era tão mau. Apesar das feridas que trazia e do corpo dolorido, ainda conseguira juntar forças para fugir e chegar até ali. Não iria desistir agora.

Cada vez mais se afastava dos homens. As flechas não a atingiam, e Giselle pensou mesmo que estivesse fora de seu alcance. De repente, cessaram por completo. Os arqueiros pareciam haver desistido e aguardavam em posição de ataque. Mas alguém não desistira. Giselle já o havia visto uma vez, há muito tempo, quando ele a fora buscar para ir à masmorra ver Manuela. Era homem da confiança de Esteban, estava certa. Aquilo a encheu de tristeza. Então, aqueles soldados estavam ali, não a mando de Miguez, como a princípio pensara, mas do próprio Esteban.

O soldado olhou para onde Giselle estava, estudando rapidamente o local, e soltou a armadura e a espada no chão. Começou a subir pelas pedras, com habilidade e destreza, esgueirando-se com cuidado e evitando o encontro com as ondas, logo chegando à encosta por onde ela se arrastava. Sem nem olhar para o mar, encostou-se à parede e começou a se arrastar também. Giselle se apavorou. Estava claro que ele a alcançaria em pouco tempo, antes mesmo que ela pudesse atingir a ponta do promontório e subir na plataforma. Tentou andar mais rápido, mas as ondas a detinham. Elas pareciam estourar cada vez mais perto agora, e não foram poucas as vezes em que tivera que parar para não ser atingida pela sua fúria incontida.

Quase no final, estacou novamente. As pedras adiante, que protegiam a pequenina trilha encostada na montanha, praticamente desapareciam sob a água, e as ondas ganhavam força, chocando-se contra o promontório com mais violência. Se conseguisse ultrapassar esse ponto, poderia começar a subir para a plataforma, de onde se atiraria no mar. Seria preciso esperar o repuxo e atravessar depressa. Giselle parou. As ondas espocavam com furor, arrastando tudo, e ela voltou a tremer. Sentia o perigo bem abaixo de seus pés e se deu conta de que não havia nada que a sustentasse se caísse.

Ela olhava do homem para as pedras, enquanto ele ia se aproximando cada vez mais. Começou a se desesperar. As vagas não davam trégua, estourando uma atrás da outra, e o intervalo entre elas não era suficiente para que atravessasse. Seria atingida em cheio e arrastada antes que pudesse começar a subir para a plataforma.

Foi quando o homem chegou mais perto. Tão perto que seus dedos roçaram nos dela, e Giselle não teve mais dúvidas. Ou atravessava, ou ele a agarrava. De qualquer forma, iria morrer. Tomou uma decisão. Esperou até que a última onda explodisse contra a rocha e recuasse, e avançou rapidamente. Mas não tão rápido que não pudesse evitar o choque com a nova onda que estourou em seguida à primeira, tão grande que logo a encobriu.

Apesar de atirada contra a parede com força descomunal, Giselle ainda teve forças para se segurar nas pedras. Mas o repuxo foi tão violento que ela não conseguiu manter-se agarrada e sentiu-se arrancada do chão e envolvida pela espuma branca e gelada da onda. Subitamente, seu corpo todo estremeceu, como se ela estivesse sendo embrulhada e sacudida por imensa massa cinza. Estendeu os braços para a frente e sentiu que não alcançava nada além da parede líquida e cinzenta que a ia tragando. Sentiu-se arrastada e esticou ao máximo a ponta dos pés, tentando tocar algo sólido. Em poucos instantes, viu-se coberta pelo mar, sendo arrastada cada vez mais fundo. Seu corpo, apanhado pela correnteza, era agora levado para longe.

Não teve tempo de chorar. Já havia engolido muita água e começou a sentir que sufocava. Não lutava mais. Era inútil. Seu corpo continuava sendo arrastado pela correnteza, e ela sabia que o fim era inevitável. Tentou não abrir a boca, para não engolir água. Em dado momento, sentindo-se asfixiar, inspirou profundamente pelo nariz e sentiu a corrente de água invadindo os seus pulmões, ao mesmo tempo em que fragmentos de sua vida lhe vieram à mente em questão de segundos.

A última coisa em que pôde pensar foi na solidão. Nunca antes, em toda a sua vida, Giselle havia se sentido tão só. Deixou-se dominar por profunda tristeza, vendo-se na iminência da morte, sozinha no fundo do oceano, sem ninguém com quem compartilhar a sua dor. As testemunhas silenciosas de seu suplício jamais poderiam atestar a dor daquele momento. Giselle sentiu-se morrer em completa solidão, o corpo livre e solto no mar, distante de tudo o que um dia representara a sua vida.

Com um movimento mecânico, parou onde estava e ficou olhando seu corpo sendo arrastado para o fundo do oceano. Como é que aquilo podia estar acontecendo? Não havia morrido? Morrera. Giselle não sabia explicar, mas estava quase certa de que havia morrido. Seu corpo, provavelmente, se fora, e o que permanecia ali era tão somente o seu espírito. Desgrudara-se da matéria, e ela continuava boiando na água, ainda imersa, confusa demais para entender o que estava acontecendo. Será que ainda respirava?

Aterrada, balançou a cabeça de um lado para outro e percebeu que ainda continuava no fundo do mar. Corpo ou espírito, o fato é que não estava mais sendo arrastada. Teria tudo sido ilusão e ela ainda permanecia viva? Subitamente, sentiu que o ar lhe faltava. Estava viva! Os mortos não precisavam respirar. Então, não morrera. Desmaiara, talvez, mas estava viva. Viva…!

Segredos da Alma












Sexo é energia e está no mundo para ser vivido e aproveitado, mas com responsabilidade e respeito.

O segredo do perdão

é o olhar sem julgamento.

O segredo da fé

é procurar as provas.

O segredo do carisma

é olhar com amor.

O segredo da saúde

é a alegria.

O segredo da força

é a vontade.

O segredo do amor

é a inteligência.

O segredo do destino feliz

é ficar no melhor.

O segredo do equilíbrio

é buscar o espiritual.

A Vida tem seus segredos,

mas para quem está atento

fica fácil descobri-los.

Capítulo 1

A gruta estava escura como sempre, e ouviam-se gemidos angustiados partindo de todos os cantos. Aqui e ali, alguns espíritos vagavam a esmo, procurando parentes, amigos, qualquer um que pudesse ajudá-los a sair. Mas não havia saída. O único lugar para onde se podia ir era para o interior da gruta, afundando mais e mais naquele mundo de trevas.

Althea levantou a cabeça e espiou. Suspirou profundamente, ergueu-se da pedra onde estava recostada e pôs-se a caminhar. Do lado de fora da gruta havia uma espécie de vale em que corria um rio fétido, onde caía pequena cachoeira de água suja e mal cheirosa. Ela estava com sede, e aquela era a única água que se podia beber por ali. Em silêncio, abaixou-se e apanhou um bocado de água nas mãos, levando-a aos lábios com avidez. Sorveu o líquido amargo e cerrou os olhos, tentando se lembrar da última vez em que bebera água límpida e fresca.

Ouviu passos atrás de si, mas não se interessou em olhar. Permaneceu agachada, bebendo a água em pequenos goles, até que o visitante falou com voz áspera e rouca:

– Althea! O chefe quer vê-la novamente! Agora!

Althea voltou-se lentamente e o encarou. Era um tipo alto e forte, olhos vermelhos, chispando fogo. Inspirou profundamente, soltou o resto da água que ainda se encontrava em suas mãos e respondeu de má vontade:

– Para quê? O que quer dessa vez?

Ele a encarou com cobiça e passou a língua nos lábios. Althea trajava apenas uma túnica preta, já esfarrapada, deixando à mostra seus joelhos e parte das coxas. Sem dizer nada, passou por ele sem nem encará-lo, mas ele a segurou pelo braço e virou-a para si, falando bem pertinho de seu rosto:

– Althea, por que não volta para mim? Sabe que podia fazê-la feliz, não sabe?

Ela olhou para ele com nojo e puxou o braço, cuspindo no chão e retrucando com desdém:

– Nem que tivesse que morrer mil vezes!

Virou-lhe as costas e voltou para dentro da gruta, ainda escutando os gritos do outro, que sacudia os punhos e esbravejava:

– Vai se arrepender, Althea, juro que vai! Irei atrás de você, não importa aonde vá!

Sem lhe prestar atenção, Althea entrou pela gruta e tomou uma trilha que descia ladeando as encostas escarpadas, beirando um precipício. Pouco depois, alcançava uma espécie de cidade rústica e sem qualquer ornamentação, envolta em brumas e extremamente quente. Foi caminhando pelas ruas irregulares, por onde passava toda sorte de espíritos sofredores, até que alcançou uma espécie de castelo feito de uma pedra negra e áspera. Imediatamente, os portões se abriram, e ela passou. Do lado de dentro, alguns soldados montavam guarda, impedindo que visitantes indesejados ultrapassassem os seus limites.

Althea já era bastante conhecida ali e, por isso, foi andando sem ser interpelada ou detida. Logo chegou a um imenso salão, onde se encontrava uma cadeira de espaldar alto, e se dirigiu para lá. O salão estava vazio, e ela ficou esperando que alguém aparecesse. Em pouco tempo, uma porta lateral se abriu e um homem entrou. Tinha uma aparência aterradora. Não era feio. Ao contrário, era até bonito. Mas seus olhos possuíam o fulgor da crueldade, e Althea sentiu um calafrio. Era sempre assim quando se encontrava na presença de Rupert, e ela estremeceu.

– Mandou me chamar, mestre? – indagou ela, fazendo uma reverência.

Rupert a estudou divertido, sentou-se no trono e fez sinal para que ela se aproximasse.

– Há quanto tempo está aqui, Althea? – indagou, encarando-a bem fundo nos olhos.
Ela pensou durante alguns segundos antes de responder:

– Hum… creio que uns duzentos anos, talvez um pouco menos. Por quê?

– É bastante tempo, não acha? – ela aquiesceu em dúvida, e ele prosseguiu: – Pois é, Althea, eu ficaria muito infeliz se soubesse que você anda pensando em passar para o lado de lá…

– Lado de lá?

– É. O lado da luz. Você não pensa nisso, não é mesmo?

Althea gelou. Como ele adivinhara? Fazia já algum tempo que andava cansada de tudo aquilo e bem pensara em pedir auxílio aos servos da luz. No entanto, não tivera coragem e o máximo que se atrevera a fazer fora uma prece muito simples e rápida que, provavelmente, ninguém havia escutado. Mas se Rupert soubesse, ficaria furioso e mandaria acorrentá-la novamente. Tentando ocultar o nervosismo, considerou:

– Mestre, não sei do que está falando.

– Não sabe? Tem certeza?

Seu olhar era extremamente intimidador, e ela viu-se sem forças e sem ânimo para contestá-lo. Estava apavorada e queria fugir correndo dali, mas sabia que não podia. Enchendo-se de coragem, respondeu:

– Bem, mestre, eu não estava propriamente pensando em sair. Apenas fiquei curiosa…

– Curiosa? Ora vamos, Althea, mas que curiosidade é essa? Então não vê que isso já é o princípio de uma traição?

– Não… em absoluto. Foi apenas curiosidade mesmo. É que já estou aqui há tanto tempo…

Ouviu o estalar de um chicote e sentiu uma dor aguda no ombro esquerdo. Sem que percebesse, Rupert havia se levantado e lhe desferido violenta chibatada, e ela uivou de dor.

– Mentirosa! – vociferou ele. – O que pensa que sou? Algum imbecil?

Althea começou a chorar. Estava apavorada, com medo do que pudesse lhe acontecer. Rupert chegou bem perto dela e desembainhou a espada que trazia presa à cintura, encostando-a bem rente ao seu pescoço. Althea suava frio e tremia, completamente apavorada.

– Sabe que podia aniquilá-la de vez, não sabe? – ela fez que sim. – E sabe em que você se transformaria, não é mesmo?

– Si… sim…

– Quer perder essas belas formas de mulher? Quer?

– Não, mestre, por favor…

– Ouça, Althea, já vi muitas como você. Muitas pensaram que podiam me enganar, passando-se para o lado da luz. Mas sabe o que aconteceu a elas? Eu as aniquilei. Dei-lhes uma segunda morte. E sabe em que se transformaram? Em nada. Em formas ovoides, sem vontade e sem consciência, instrumentos perfeitos de obsessão e tormento.

– Por favor, meu senhor, não faça isso comigo. Eu não fiz nada…

– Por enquanto. Mas quanto tempo levará até que tente me trair de verdade?

Ela não respondeu. Estava apavorada, com medo até de pensar. Sabia que ele podia ler-lhe os pensamentos e nem queria imaginar o que poderia lhe acontecer se descobrisse que ela já estava farta daquela vida.

– Eu devia mesmo era tê-la deixado para Decius – continuou.

– Não! – gritou ela – Decius não, por favor!

Rupert soltou estrondosa gargalhada e segurou-a pelos punhos.

– Tem medo de Decius, não é? Tem mais medo dele do que de mim. No fundo, sabe que eu sou bom para você. Posso castigá-la de vez em quando, mas é para o seu bem. Contudo, quem lhe dá proteção? Sou eu. Quem cuida de você? Eu também. Quem impediu que a destroçassem, logo que veio para cá? Eu.

– Eu sei, mestre, e lhe sou muito grata.

– Pois não parece. Devia ter mais consideração. Se não fosse eu, Decius já a teria apanhado. Sabe o que ele sente por você, não sabe?

Althea encolheu-se toda. Lembrou-se dos poucos minutos atrás, em que Decius fora chamá-la na beira do rio e quase a agarrara. Decius havia sido seu marido em sua última encarnação. Um homem rico e poderoso, extremamente cruel e impiedoso. Althea, por sua vez, era uma jovem linda e exuberante, inteligente e mestra na arte de manipular espíritos ignorantes, colocando-os a seu serviço em troca de pequenos agrados, em geral, moedas e sangue fresco de animais. Não amava o marido. Casara-se com ele porque era rico e influente, viúvo, com uma filha um pouco mais jovem do que ela, de nome Severn.

Durante suas várias existências, Althea sempre se demonstrou uma pessoa orgulhosa, fria, dissimulada, cruel, imoral… Gostava de sexo e trocava de parceiros sem o menor constrangimento, sem se importar se eram homens ou mulheres. Desde que lhe dessem prazer, eram bem vindos em sua cama. Tinha apenas dois interesses na vida: sexo e poder, e era-lhe até mesmo difícil precisar qual dos dois alimentava mais o seu ego.

Logo se interessou pela jovem e linda filha de Decius. Utilizando-se de sua magia, fez um trato com espíritos trevosos, prometendo-lhes inúmeros sacrifícios, caso levassem para seu leito a jovem Severn. O resultado custou, mas chegou. Severn, moça imprudente e sensual, acedia às sugestões de seus obsessores e, sem nem entender por quê, viu-se, de uma hora para outra, desejando o corpo esbelto de Althea. As duas tornaram-se amantes. Severn, com o tempo, foi realmente se apaixonando por Althea, mas esta não estava interessada em amor. Só o que queria era prazer.

Um dia, o inevitável aconteceu. Decius descobriu tudo e encheu-se de cólera. Sentia pela filha e lamentava por sua Althea. Sentiu-se traído, humilhado, escarnecido. Althea lançou-lhe em face os piores impropérios, acusando-o de ser mal amante e de não chegar aos pés de Severn. Não conseguindo conter a fúria, Decius partiu para cima dela e começou a apertar o seu pescoço, e Althea sentiu-se violentamente arrancada do corpo, tendo sido levada por seus escravos para as profundezas do umbral.

Ao adentrar o castelo de Rupert, Althea se assustou com o seu ar lúgubre e gélido. Embora a cidade ao seu redor fosse quente qual uma fornalha, o ar ali era frio como de uma geleira. Rupert se apresentou logo que ela chegou. Dissera-lhe que já eram antigos conhecidos, pois que era com ele que tratava os seus serviços. Mas agora era hora de pagar-lhe o justo preço. Os sacrifícios que ela lhe oferecia representavam apenas a quota do mundo carnal, mas era chegada a hora de pagar também as parcelas do astral.

Althea assustou-se e quis protestar, mas foi logo acorrentada e submetida a toda sorte de torturas. Aos poucos, Rupert a foi dominando e domando, e logo ela se transformou em sua escrava mais fiel. Anos depois, quando Decius desencarnou, foi recolhido por Rupert, e qual não foi o espanto de Althea ao descobrir que eles haviam sido amigos em uma vida anterior, e que essa amizade continuava no mundo das trevas.

Quanto a Severn, casou-se e teve filhos, e passou pouco tempo no umbral quando desencarnou. Logo clamou pelo auxílio de Deus e partiu em direção à luz, e Althea nunca mais soube de seu paradeiro.

Althea voltou seus pensamentos para a realidade e fixou Rupert com angústia. Se Decius a pegasse, seria mesmo o seu fim. Ele a escravizaria e aproveitaria para ultimar a vingança que não conseguira realizar durante aqueles quase dois séculos. Tentando manter-se calma e confiante, ponderou:

– Ouça, Rupert, sei que errei, mas gostaria de mais uma chance.

– Hum… não sei se você está merecendo. Talvez Decius consiga colocá-la de volta em seu devido lugar.

– Por favor, mestre, perdoe-me. Prometo nunca mais pensar nos espíritos de luz. Foi apenas uma curiosidade, imprudência, eu sei, mas não fiz por mal.

Rupert permaneceu alguns minutos calado, estudando-a. Quando afinal falou, foi com voz ameaçadora e incisiva:

– Está bem, Althea. Vou lhe dar mais uma chance. Mas, se falhar, já sabe. Se não acabar com você, eu mesmo, entrego-a nas mãos de Decius e não quero mais saber de você.

– Oh! obrigada, Rupert. Não vai se arrepender, você verá.

– Tenho uma tarefa para você. Coisa simples, espero.

– De que se trata?

– De uma senhora. Fizeram-me generosa oferta para trazê-la para cá. A família está de olho na herança, e o que você tem a fazer é sugar-lhe as energias, até que ela não resista e desencarne. Acha que pode dar conta?

– Sim, mestre, estou certa de que sim. Sei perfeitamente como sugar as energias dos encarnados e não será difícil trazê-la para cá.

– Ótimo. Mas lembre-se. Não falhe. Caso contrário, não serei mais responsável pelo que lhe irá acontecer.

Althea saiu dali mais tranquila. A tarefa não era das mais difíceis, e ela se desincumbiria dela com maestria. Precisava reconquistar a confiança de Rupert, ou Decius acabaria com ela.

Greta












A vida é uma sucessão de acontecimentos encadeados para que se cumpra nosso programa de crescimento.

Por que uma criança saudável e alegre morre de repente? Como vencer a dor da perda e continuar vivendo? O que fazer quando a motivação vai embora e tudo parece perdido?

Lurdinha é babá de Tiago, um garoto adorável. Um dia, porém, um terrível acidente acontece e afeta drasticamente a vida da moça. Triste e desiludida, ela tenta viver como pode. Em sua jornada pela sobrevivência, nasce uma nova mulher: Greta!

Entre ilusões e desilusões, o destino mostra a Greta que só a sabedoria da vida reúne todas as respostas para os seus questionamentos.

Capítulo 1

A madrugada corria alta quando Felícia despertou, sentindo as gotas do suor frio que desciam pelo seu rosto. Olhou ao redor apreensiva, como que temendo alguma visão aterradora, e virou o rosto para o outro lado. O marido continuava adormecido, dando mostras de nada haver percebido sobre a agitação da esposa.

Com profundo suspiro, Felícia se levantou. Tivera um pesadelo medonho, algo sobre uma criança despencando num poço. Uma estranha sensação a sufocava, como se algo ou alguém a estivesse alertando de que o filho corria perigo. Assustada, correu ao seu quarto e abriu a porta. O menino dormia um sono profundo e tranqüilo, e ela se aproximou. Sentou-se a seu lado na cama de meia grade e permaneceu estudando o seu rosto. Tiago era um menino muito bonito, com seus cabelos castanhos claros e seus olhinhos negros. Pousou-lhe um beijo suave na testa e se levantou para sair. Da porta, ainda deu uma última olhada para sua caminha, certificando-se de que ele estava bem.

Apesar do estranho pressentimento de há pouco, Felícia encostou a porta do quarto do filho e voltou para a cama, tentando se convencer de que tudo não passara de um sonho idiota. Olhou para o relógio na mesinha: faltavam quinze minutos para as quatro. Em breve, teria que se levantar e começar a trabalhar. Era o dia do quinto aniversário de Tiago, e ela iria lhe preparar uma bonita festa. Pensando na alegria do filho ao ver a festa, acabou adormecendo novamente, já esquecida do misterioso sonho.

Na manhã de sábado, Artur acordou assim que Felícia colocou os pés para fora da cama e cumprimentou-a com jovialidade:

– Bom dia, querida. Dormiu bem?

– Muito bem – respondeu ela, beijando-o de leve nos lábios. – E você?

– Hum, hum…

– Preciso me apressar. Ainda há muito o que fazer. Tenho que telefonar para a moça do bolo, ver se os salgadinhos e o cachorro-quente já estão prontos… Ah! e também preciso enrolar os docinhos, encher as bolas…

Artur deu um sorriso maroto e puxou-a com ternura, dando-lhe um beijo suave na bochecha.

– Você é terrível, Felícia. Não deixa escapar nenhum detalhe.

– É claro que não.

Ouviram passos apressados no corredor, e a porta se abriu rapidamente. Tiago entrou, lindo em sua jardineirinha azul, seguido da babá, que vinha se desculpando:

– Desculpe-me, dona Felícia, mas Tiago é impossível. Antes que pudesse segurá-lo, saiu correndo e abriu a porta.

– Não se preocupe, Lurdinha – tranquilizou Felícia, segurando o menino no colo. – E você, hein, meu rapazinho? Parabéns!

Felícia abraçou o menino e beijou-o várias vezes, e Tiago deixou-se ficar, embevecido com os carinhos maternos.

– Muitas felicidades, meu filho – acrescentou Artur, beijando-o também.

O menino atirou-se em seu colo, e Artur sentou-se com ele na cama.

– Pode deixá-lo conosco – falou Felícia para Lurdinha. – Depois o levaremos.

Com um aceno de cabeça, a babá pediu licença e saiu. Lurdinha trabalhava para os Fontes desde que Tiago nascera e se sentia feliz e segura com o emprego. Eles eram patrões maravilhosos, e ela se afeiçoara muito ao menino. Além disso, havia o Hélio. Hélio o era motorista da família, e ela estava apaixonada. Andando pelo corredor, resolveu ir ao seu encontro. Rapidamente, bateria à porta de seu quarto e dar-lhe-ia um beijo apressado, para então retornar e aguardar que Felícia lhe levasse Tiago. Era aniversário do menino, e havia muito o que fazer.

Hélio, porém, não se encontrava, e Lurdinha não pôde esconder a decepção. Aonde é que teria ido? Voltou para casa rapidamente e foi sentar-se na cozinha.

– O que há com você, menina? – indagou Hermínia, empregada de muitos anos.

– Nada que lhe interesse – respondeu Lurdinha de má vontade.

– Credo, que falta de educação é essa? Que bicho foi que mordeu você, hein?

Já arrependida, Lurdinha levantou-se da cadeira e foi abraçar a outra.

– Perdoe-me, Hermínia. É que estou um pouco nervosa.

– É por causa do Hélio, não é?

– Do Hélio? – disfarçou. – Não, não… Ora, Hermínia, mas que bobagem…

– Será mesmo bobagem, menina? É só o Hélio sair que você fica aí, chorosa pelos cantos.

– Não é nada disso.

– Quantas vezes vou ter que lhe dizer que o Hélio não serve para você?

– Pare com isso, Hermínia. Não é o que está pensando.

– Não. É muito mais. Então você não percebe que ele está usando você? O Hélio é um sem-vergonha, isso sim.

– Hermínia! Não fale assim dele.

– Falo sim. Conheço o Hélio melhor do que você. Não pode ver um rabo-de-saia que fica logo caído.

– Não é verdade!

– Só não vê quem não quer.

– O Hélio gosta de mim.

– Gosta. Mas gosta da filha do açougueiro também, e da irmã do padeiro, e da empregada do vizinho…

– Pare, Hermínia! Você está enganada. O Hélio gosta é de mim. Ele disse…

– Disse? Bem, acredita quem quer, não é mesmo?

A conversa foi interrompida pela chegada de Felícia, que mandou servir o café da manhã, e Tiago nem esperou para se alimentar, ansioso que estava para abrir os presentes. Hermínia estava terminando de colocar a mesa quando Artur perguntou:

– Você viu o Jonas?

– Está lá na piscina.

Jonas era o jardineiro e era quem cuidava da piscina e de toda a parte externa da casa. A família Fontes era extremamente rica. Artur era sócio majoritário de uma construtora e possuía vários imóveis espalhados pela cidade inteira. Felícia também provinha de uma família de posses, e o casal levava uma vida tranquila e sem preocupações financeiras.

Ao perceber que Artur queria falar com Jonas e que Jonas estava lá fora, Lurdinha viu uma ótima oportunidade para sair novamente e tentar encontrar Hélio.

– Quer que vá chamá-lo, doutor Artur? – ofereceu-se.

– Diga-lhe apenas que não se esqueça de trancar o portão da piscina. Haverá muitas crianças na festa hoje, e não queremos acidentes.

– Sim, senhor.

Lurdinha foi correndo dar o recado. Jonas estava limpando a piscina quando ela se aproximou, mas não havia nem sinal de Hélio. Onde é que ele havia se metido?

– Bom dia, Lurdinha – cumprimentou ele.

– Bom dia, Jonas. O doutor Artur disse para você não se esquecer de trancar o portão quando terminar. Por causa das crianças.

– Diga a ele que vou ter que trocar esse cadeado. Está enferrujado e não presta mais.

Ela balançou a cabeça e esticou o pescoço, na tentativa de ver se Hélio estava por ali. Como não o viu, soltou um muxoxo e voltou para casa contrariada, a fim de dar o recado ao patrão.

– Artur – falou Felícia preocupada –, dê logo dinheiro ao Jonas para comprar o cadeado. Sabe que não gosto daquela piscina aberta.

– Não se preocupe. Farei isso logo após o café.

– Enquanto isso, Lurdinha, não desgrude os olhos de Tiago.

– Pode deixar, dona Felícia. Não o deixarei sozinho um minuto sequer.

Terminado o desjejum, Artur foi buscar o dinheiro e saiu para falar pessoalmente com Jonas. Havia ainda mais algumas coisas que queria que ele comprasse. Enquanto isso, Felícia e Hermínia punham mãos à obra para enrolar os docinhos, e Lurdinha saiu com Tiago para o quintal. Ele ganhara dos pais um enorme aeromodelo e queria experimentá-lo no jardim. Com propulsão elástica, o avião se lançava no ar e planava durante vários minutos, o que deixou Tiago encantado. Lurdinha ajudava-o a colocar o avião em movimento, e o menino corria para buscá-lo onde caísse.

Assim ia transcorrendo a manhã. Tiago não se cansava de brincar com o aeromodelo, e Lurdinha o acompanhava, enquanto Felícia e Hermínia continuavam com os preparativos para a festa. Jonas havia saído às pressas para fazer compras antes que as lojas fechassem, e ela e o menino permaneciam sozinhos no jardim. O avião, por vezes, planava até perto da piscina, e era Lurdinha quem ia buscá-lo, alertando Tiago de que não deveria se aproximar.

Foi num desses momentos que viu Hélio. Ele vinha trôpego e com ar cansado, e deu um sorriso irônico quando a avistou.

– Olá, Lurdinha. Brincando de aviãozinho?

– Onde esteve? – tornou ela, com ar furioso.

– Doutor Artur me deu a noite de folga. Fui visitar uns amigos.

– Dormiu lá?

– Dormi. Por quê?

– Você é um cínico, Hélio. Aposto como esteve com alguma vagabunda.

Hélio soltou uma gargalhada debochada e olhou para ela com ar de cobiça. Havia mesmo passado a noite em casa de um amigo, após uma longa rodada de pôquer, e estava frustrado porque não conseguira conquistar a irmã do rapaz.

– Venha cá – disse ele, tentando segurá-la pela mão.

– Não…

– Lurdinha! – era a voz de Tiago. – Não vai mais brincar?

Desvencilhado-se do rapaz, Lurdinha voltou para onde Tiago estava, parado com o aeromodelo nas mãos, sentindo às suas costas o olhar febril de Hélio. Ajoelhou-se ao lado do menino e pôs-se a prender o elástico nas engrenagens do avião, preparando-o para novo vôo. Ajeitou o brinquedo na mão de Tiago e ajudou-o a soltá-lo, e o avião disparou no ar, voando em direção ao portão da frente. A um olhar da criança, Lurdinha aquiesceu, e ele saiu correndo para buscar o avião no local onde havia pousado. Com os olhos pregados no menino, mas a atenção presa em Hélio, Lurdinha ficou vendo-o se afastar.

O motorista também observava. Assim que Tiago chegou mais perto do portão da frente, acercou-se de Lurdinha e segurou-a pela cintura, aproximando bem a boca da sua.

– Sabia que você fica linda zangada? – gracejou.

Ela se soltou com brusquidão e encarou-o com olhar frio, disparando em tom irônico:

– Por que não vai elogiar seus amigos de pôquer?

– Porque eles não têm o seu corpo…

Rapidamente, Hélio envolveu-a num abraço sedutor e deu-lhe um beijo apaixonado, que ela correspondeu contrariada. Depois que ele a soltou, fitando-a com ar sensual, ela ajeitou o uniforme e correu ao encontro de Tiago, que vinha vindo com o aeromodelo na mão.

– Vamos jogar de novo? – indagou eufórico, sem prestar muita atenção ao motorista.

– É claro, querido.

Enquanto Lurdinha ajeitava novamente o elástico, notou os olhares lúbricos que Hélio lhe lançava. Aos pouquinhos, foi sentindo que um rubor ia subindo pelas suas faces, e seu corpo todo se arrepiou ao pensar no beijo que ele lhe dera. Terminou de ajeitar o elástico e levantou o avião, pronta para soltá-lo novamente. Antes de soltar, alisou os cabelos de Tiago com uma das mãos e falou com voz doce:

– Olhe, querido, a Lurdinha vai ter que ir ali um instantinho, mas volta logo. Por que não joga sozinho uma vez?

– Aonde você vai? – tornou com voz amuada, sem perceber a presença de Hélio, agora semi-oculto dentro da garagem.

– Vou ao banheiro da garagem – Tiago não respondeu. – Mas cuidado, não vá chegar perto da piscina.

– Está bem – respondeu contrariado.

– Promete que não vai chegar perto da piscina? Sua mãe vai ficar zangada.

– Prometo – finalizou de má vontade.

Ela ajudou o menino a disparar o aeromodelo e correu para dentro da garagem, atirando-se nos braços de Hélio sem pensar em mais nada. Não tencionava se demorar. Seriam apenas um beijo e algumas carícias, e ela logo voltaria para junto da criança. Mas não foi isso o que aconteceu. Hélio a foi dominando de uma tal maneira, que ela não conseguiu lhe opor nenhuma resistência. Sentiu que ele a acariciava e a deitava no chão, entre os dois automóveis dos patrões, e ela acabou se esquecendo de todo o resto. Com o corpo e os pensamentos voltados para ele, entregou-se ao amor, deixando de lado a preocupação com Tiago.

Sequer havia esperado para ver onde o aeromodelo iria cair. O aviãozinho planou lindamente por alguns minutos, até que pousou de leve sobre a água azul e cristalina da piscina. Tiago teve um sobressalto. Lurdinha lhe dissera para não se aproximar da piscina, sua mãe podia não gostar, e ele não estava disposto a levar uma bronca. Ficou parado onde estava, torcendo para que Lurdinha chegasse logo, louco de vontade de retomar a brincadeira. Só que Lurdinha estava demorando. Sabia que tinha que esperar mas, pensando bem, que mal faria em dar apenas uma olhadinha? Assim, quando Lurdinha voltasse do banheiro, ele poderia lhe dizer com certeza onde é que o avião havia caído.

E depois, não entendia por que não podia se aproximar sozinho da piscina. Pois quando o pai estava, os dois não caíam juntos na água, e ele se divertia a valer em seu colo? Aquilo era coisa da mãe. Sua mãe não gostava da piscina, tinha pavor de água. Por isso, vivia implicando, ralhando com o pai todas as vezes em que o levava para a água. Na certa, não havia nenhum mal em chegar mais perto sozinho. Tinha certeza de que nada aconteceria.

A passos vagarosos, seguiu para a piscina, olhando de um lado a outro, para ver se alguém estava olhando. Não havia ninguém por perto. A mãe estava ocupada na cozinha, e o pai deveria estar lendo seu jornal. Devagar, foi se aproximando, até que alcançou a cerca que isolava a piscina do resto do jardim. Encostou o rosto na grade e espiou, os olhinhos brilhando de ansiedade. Flutuando na água translúcida, o aviãozinho se virava para um lado e para o outro, empurrado pela brisa suave da manhã.

A todo instante, Tiago voltava o rosto para a porta da garagem, na esperança de que Lurdinha viesse voltando do banheiro, mas nada. Por que é que estava demorando tanto? Será que tivera uma dor de barriga? Enquanto isso, o avião ia rodopiando em todas as direções, e Tiago, do lado de fora, ia seguindo o seu deslizar pela água. Foi caminhando pela grama, acompanhando a grade que ladeava a piscina, olhos grudados no brinquedo. Até que suas mãos alcançaram o portão, que cedeu alguns centímetros, com um rangido de ferrugem. Tiago parou assustado. O portão estava aberto! Será que faria mal entrar e esperar Lurdinha do lado de dentro? Não, não faria. Ela já devia estar mesmo chegando, e ele só queria ficar mais perto de seu avião.
Sentou-se na borda da piscina e ficou acompanhando o bailado do aviãozinho na água, sempre empurrado pelo vento. Ele ia de um lado a outro e, cada vez que se aproximava, Tiago sentia o coração disparar. Será que dava para pegá-lo? Mas o avião, como que escutando os seus pensamentos, mudava de direção e seguia para o lado oposto, deixando o menino em crescente expectativa.

Por que é que Lurdinha demorava tanto? Daquele jeito, o aviãozinho ia acabar se estragando. E se afundasse? Aí é que estaria tudo perdido. A toda hora, olhava para a porta, ansioso por ver Lurdinha chegando, mas Lurdinha, longe de perceber o que estava acontecendo, esquecera-se de tudo nos braços de Hélio.

Até que o aviãozinho se aproximou novamente. E chegou tão perto que Tiago sentiu que poderia tocá-lo com os dedos. Num impulso, pôs-se de joelhos e esticou um dos bracinhos, tentando puxá-lo com as pontas dos dedinhos, que roçaram uma das asas. O avião tombou para o lado, e a asa afundou na água, fazendo com que o menino, instintivamente, afundasse a mão em busca do brinquedo. Tudo foi muito rápido. Em frações de segundos, o corpo todo de Tiago acompanhou sua mãozinha, e ele afundou na água com rapidez vertiginosa.

Dali a quinze minutos, Lurdinha e Hélio haviam acabado de se amar. Ela alisou o uniforme e ajeitou o cabelo, pondo-se de pé rapidamente. Deu uma olhada para fora, procurando por Tiago, mas o menino não estava em nenhum lugar visível. Na certa, cansara-se de esperar e fora para dentro. Dona Felícia ficaria furiosa, mas ela daria a desculpa de que passara mal e tivera que usar o banheiro da garagem.

Despediu-se de Hélio com um beijo e voltou para casa satisfeita. Entrou na cozinha, onde Felícia e Hermínia enrolavam brigadeiros e cajuzinhos, e Felícia foi logo perguntando:

– Cadê o Tiago?

– Não está aqui? – revidou com espanto. – Não entrou?

Na mesma hora, o coração de mãe de Felícia se apertou e, em seu íntimo, sabia que o inevitável havia acontecido. Largou a massa dos docinhos, esfregou as mãos no avental e correu para fora, gritando desvairada:

– Tiago! Tiago! É a mamãe! Responda, meu filho, onde está?

Coração aos pulos, correu para a piscina, com Lurdinha e Felícia mais atrás. Mesmo de longe, podia avistar uma mancha azul flutuando na água translúcida, e foi com assombro que percebeu tratar-se da jardineira que Tiago estava usando. Não tinha mais dúvidas. Era mesmo o seu filho que estava ali, boiando de bruços na água, o aviãozinho, parcialmente submerso, batendo de leve em seu corpo. Felícia não conseguiu gritar. Na mesma hora, sentiu uma vertigem e tudo ficou nublado à sua frente. Sentiu o corpo tombar inerte e perdeu a noção da realidade. Desmaiou.

Quando voltou a si, estava deitada em sua cama e notou que o marido se encontrava parado perto da janela, tendo ao lado um homem que, a princípio, não reconheceu. Aos poucos, porém, foi conseguindo fixar a vista e percebeu que era um médico. Seu pai. Ergueu-se na cama e encarou os dois, balbuciando confusa:

– Pai…? Artur…?

Os dois se voltaram ao mesmo tempo e tinham lágrimas nos olhos. Felícia ficou vendo-os se aproximar, tentando concatenar as idéias e se lembrar do que havia acontecido.

– Ah! Felícia! – chorou Artur desolado. – Que desgraça!

– Desgraça?! – repetiu ela atônita. – Mas o quê…?

Foi então que se lembrou. Vendo o retrato do filho na mesinha-de-cabeceira, todo o horror da cena de há pouco voltou à sua mente, e ela pôs-se a gritar, tentando levantar-se da cama e sair.

– Meu filho! Quero meu filho! Onde está Tiago! Tragam-no! Quero meu filho!

Felícia parecia ter redobrado as forças e quase jogou Artur ao chão. O pai, imediatamente, aplicou-lhe um sedativo no braço, e ela foi amolecendo aos pouquinhos, até que tornou a adormecer.

– É melhor que durma – aconselhou Antônio. – O choque foi demais para ela.

Sem dizer nada, Artur tomou o braço do sogro e foi com ele para fora. Precisava tomar as providências para o funeral. A festa de aniversário havia sido cancelada, e muitos convidados desavisados voltavam para casa petrificados pelo choque.

– Como está ela? – indagou Ondina, mãe de Felícia.

– Nada bem – respondeu Antônio. – Acho melhor você ir ficar com ela.

Depois que Ondina foi para o quarto de Felícia, Antônio puxou Artur para o quarto de Tiago, onde o corpo do menino fora colocado sobre a cama, coberto por um lençol.

– Sei que é difícil – falou Antônio com compreensão. – Se quiser, posso fazer tudo sozinho. Apesar de estar sofrendo muito com a perda do meu neto, já estou acostumado com a morte.

– Não, Antônio – objetou Artur decidido. – Tiago é meu filho..

.Desatou a chorar desconsolado, e Antônio abraçou-o cheio de compreensão.

– Não tenha vergonha de chorar, Artur.

– Sou homem, deveria ser o primeiro a me manter forte para dar apoio a minha mulher.

– Todo homem é um ser humano e, no seu caso em especial, é também pai. Não sinta vergonha de sentir dor. Apenas sinta.

– Ah! Antônio… – foi só o que conseguiu dizer.

Antônio levou Artur de volta para a sala e deixou-o aos cuidados de Hermínia, voltando sozinho para o quarto do menino. Examinou o seu corpo e trocou sua roupa, ajeitando-o novamente na cama, no exato instante em que a polícia chegava para as investigações de praxe.

A pedido de Artur, o promotor encarregado do caso mandou arquivar o inquérito, e a morte de Tiago foi tida como acidental. Embora o corpo tivesse que ser levado à perícia, logo foi liberado, e o funeral transcorreu cingido por uma aura negra de tristeza e lamentação. Havia muitas pessoas presentes, parentes e amigos, chocados com o ocorrido, além de vários repórteres. Apenas Felícia não comparecera. Por ordens médicas, fora obrigada a guardar o leito, proibida de sair enquanto não se recuperasse do choque.

Depois do funeral, Artur mandou chamar Lurdinha ao seu gabinete. Ela entrou com os olhos inchados de tanto chorar e se aproximou timidamente.

– Mandou me chamar, doutor Artur? – indagou com voz sumida.

– Mandei sim. Sente-se, Lurdinha, e vamos conversar – ela se sentou numa cadeira de frente para ele e ficou esperando, de olhos baixos, sem coragem para encará-lo. – Muito bem, Lurdinha. Agora é entre nós. Quero saber o que foi que aconteceu realmente.

– Eu fui ao banheiro…

– É mentira! Sei o que você e o Hélio estavam fazendo.

– O senhor sabe?

– Ele me contou. Estava apavorado e contou tudo. Você estava tendo relações com ele enquanto meu filho se afogava!

– Oh! doutor Artur.

Lurdinha ocultou o rosto entre as mãos e desatou a chorar convulsivamente, enquanto Artur prosseguia:

– Você poderia ser presa, Lurdinha. Sabe disso, não sabe?

– Por favor, doutor Artur, foi um acidente. Também estou sofrendo.

– Não tanto quanto eu. Não tanto quanto Felícia ou qualquer outro da família.
Entre soluços, Lurdinha tentou protestar:

– O senhor está sendo injusto. Eu gostava muito de Tiago.

– Gostava tanto que o deixou sozinho na beira da piscina para se deitar com seu amante!

– Por que está sendo tão cruel? Não tive culpa…

– Culpa, você teve sim. O próprio promotor público me disse que iria indiciá-la por crime culposo. Sabe o que é isso? – ela meneou a cabeça. – Você poderia ser condenada à prisão por ter sido negligente em seus deveres e, com isso, haver causado a morte de meu filho.

– Prisão? – os olhos de Lurdinha se ofuscaram, e ela quase desfaleceu. – Não faça uma coisa dessas comigo, doutor Artur. Por favor, eu lhe imploro. Sei que fui irresponsável, mas eu jamais desejei isso.

– Sei que não. Mas isso não altera o fato de que realmente aconteceu.

– Por favor, faço qualquer coisa. O que o senhor quiser. Mas não deixe que me prendam.

– Na verdade, Lurdinha, não pretendo fazer isso. A sua prisão não nos traria mesmo Tiago de volta, e os inconvenientes de um processo criminal seriam por demais dolorosos para minha mulher – ele fungou e prosseguiu: – No entanto, não posso mais mantê-los ao meu serviço. Nem a você, nem ao Hélio. Já o despedi e, quanto a você, estou despedindo-a também. E sem qualquer gratificação ou referência. Será mesmo melhor que nunca mais volte a trabalhar como babá.


O Preço de Ser Diferente











O que conta, verdadeiramente, para o espírito, é a forma como o ser humano se conduz diante da vida.

Quando a sociedade estabeleceu um modelo de normalidade, criou uma guerra antropológica com a natureza humana.

A diversidade natural é real e em torno dela age a funcionalidade da ecologia, que trabalha em favor do progresso de todos.

Cada um de nós é único, com um temperamento original relativo às necessidades essenciais do progresso pessoal e coletivo. Quem resolve seguir o modelo se ilude bloqueando a expressão de sua alma, criando insegurança, doença, desilusão e sofrimento.

Os iludidos dão mais importância às aparências do que à verdade, que prioriza os valores eternos do espírito.

Servos do mundo, sofrem o mundo.

Em razão disso, quem assume sua verdade e age de acordo com os valores da Vida, mesmo enfrentando o preconceito e pagando o preço de ser diferente, passa credibilidade, obtém respeito e se realiza.

Porém, os escravos do preconceito estão se candidatando no futuro a experimentar as mesmas experiências que criticaram, a fim de aprender a conviver com as diferenças.

Fraternidade é o resultado da capacidade de apreciar as diferenças.

Capítulo 1




Estava fazendo um calor infernal quando as portas da escola pública em que Romero estudava se abriram. O menino saiu esbaforido, esfregando a testa e o pescoço para enxugar o suor. Andou por alguns metros, até que chegou ao ponto de ônibus, e parou. Do outro lado da rua, os colegas de turma passaram e apontaram para ele. Em seguida, pararam e cochicharam algo nos ouvidos uns dos outros, soltando risadas sarcásticas.



– Olha lá a bichinha! – cantarolou um deles, apontando o dedo para Romero e rindo feito um demônio.



Na mesma hora, Romero sentiu o rosto arder. Abraçou a pasta e desatou a correr, sob as risadas irônicas dos outros meninos, que continuavam a apontar para ele e a gritar:



– Lá vai a bichona!

– Pega, pega o veadinho!

– Ai, ai, boneca…

Romero correu tanto que nem sentiu que disparava a caminho de casa. Somente quando viu o portão de ferro do seu jardim foi que se deu conta de que havia chegado. Apoiou a mão no portão, tentando respirar e lutando para não chorar. Por que é que não o deixavam em paz? Por que viviam acusando-o de algo que não era?

– Veio a pé, Romero? – era a voz de Judite, que vinha chegando da faculdade. – O que foi que houve? Você está pálido.

Judite era a irmã querida, a única que parecia realmente se importar. Cinco anos mais velha, ingressara na faculdade de Letras e era linda de morrer. Romero correu para os seus braços e desatou a chorar. Era sempre assim. Os meninos da rua ou da escola viviam a implicar com ele, e era Judite quem sempre o defendia e consolava.

– O que foi que lhe fizeram? – prosseguiu ela, com ar bondoso. – Foram os garotos de novo? Debocharam de você?

– Ah! Judite, não sei por que fazem isso comigo. Não sou nada disso que eles dizem que sou!

– Sei que não, querido. E você não devia se importar.

– Mas eu me importo. Sabe o que papai vai dizer.

– Ele não vai dizer nada. Você não precisa contar.

– Mas ele tem um jeito de adivinhar as coisas…

Era verdade. O pai de Romero era inspetor na escola que ele frequentava e trabalhava nos dois turnos para sustentar a família. Era muito honesto e muito correto, e gozava de prestígio frente ao diretor. Não havia nada que acontecesse na escola que não descobrisse. Tudo o que Romero fazia, ele ficava sabendo por intermédio desse outro.

– Você acha que alguém viu alguma coisa? – perguntou Judite.

– Não sei…

– Mas o que lhe fizeram dessa vez? Bateram em você? Xingaram?

– É. Eu estava no ponto, esperando a condução. Os meninos passaram e me chamaram de bichinha, de veado… Só porque não tenho namorada…

Romero fez um beicinho trêmulo e agarrou-se a Judite, que acariciou e beijou seus cabelos.

– Vamos entrar, Romero. Se papai chegar e brigar com você, direi que não foi culpa sua. E não foi mesmo. Que culpa tem se os garotos implicam com você?

– Você sabe que papai vive me cobrando coisas. Só porque não quis ir ao tal bordel, não quer dizer que não sou homem.

– É claro que não! Papai é um tolo. Pensa que sair por aí se deitando com qualquer vagabunda é sinal de masculinidade. Mas você não precisa ir, se não quiser. Não tem que provar nada a ninguém. Nem a ele. No dia em que conhecer uma garota legal, vai ver como as coisas mudam.

Romero silenciou. Achava muito difícil conhecer uma garota legal. Quer dizer, conhecer, conhecia muitas garotas legais. Mas nenhuma que o fizesse mudar. Mudar em quê? Ele era homem, disso não tinha dúvidas… Mas então, por que é que não se interessava pelas meninas? Judite lhe dizia que ele era muito novo e ainda não conhecera a garota certa. Mas como seria a garota certa? Loura? Morena? Alta? Baixa? Gorda? Magra? Ele não sabia. Só o que sabia era que algo dentro dele lhe dizia que jamais encontraria a garota certa, o que lhe causava imenso desgosto, um quase desespero. O que o pai faria se ele não namorasse ninguém?

Enquanto Romero se trocava, ouviu o bater das panelas na cozinha, e a voz da mãe se elevou, falando algo com Judite. Mesmo sem entender, Romero sabia que falavam dele. Judite, na certa, contara à mãe o que acontecera. A mãe era uma mulher muito bondosa, mas tinha medo do pai e não ousava contrariá-lo. Por mais que tentasse protegê-lo, não se atrevia a contestar as ordens do marido, e Romero, muitas vezes, apanhava sem que a mãe sequer levantasse os olhos.

Apenas Judite interferia. Ela era danada, a Judite. Meiga e decidida. Educada e atrevida. Carinhosa e corajosa. Quando crescesse, Romero queria ser como Judite. Ah! Se tivesse nascido menina, nada daquilo estaria acontecendo. Ele poderia ser ele mesmo, sem ter que corresponder às expectativas do pai. Romero era medroso e arredio, tímido e calado. Mas sabia ser generoso e sentia que o seu coração era um oceano de sentimentos. Era sensível, gostava de plantas e de animais. Adorava crianças e respeitava os idosos. Era um menino afável e extremamente educado, o que o pai interpretava como sinônimo de fragilidade. Um homem deve ser forte e destemido, era o que ele dizia. Deve ser viril, másculo e proteger as mulheres. Jamais se misturar a elas ou a suas bobagens.

Mas Romero adorava as bobagens femininas. Gostava de poesias, de apreciar a natureza, de escutar o canto dos pássaros. Amava ver a irmã se vestir para sair, passar batom, empoar o rosto, levantar o cabelo em um coque ou rabo-de-cavalo. Chorava com as fitas de cinema, emocionava-se até com novelas. Lia romances e mais romances, derretendo-se com os beijos e as carícias que os personagens trocavam.

Em tudo isso, Romero não conseguia vislumbrar nenhum problema ou defeito. Mas o pai se aborrecia e gritava com ele todas as vezes em que o flagrava admirando os vestidos da irmã ou lendo um romance água-com-açúcar. Pior ainda quando apanhava na rua ou chegava em casa choroso, magoado com as piadinhas que os colegas faziam. Ele não entendia. Não fazia nada para provocar tantos gracejos. Nem desmunhecava. Mas o fato era que todos duvidavam de sua masculinidade, e o pai ficava furioso quando ele voltava para casa fugido, após ter sido humilhado pelos outros garotos.

– Romero! Venha cá!

Romero voltou de seu devaneio e teve um sobressalto. Silas, o pai, acabara de chegar e, pelo tom de sua voz, estava claro que já ficara sabendo do ocorrido. Ele terminou de se trocar e foi para a sala, onde o pai caminhava de um lado para o outro.

– Mandou me chamar? – indagou com voz miúda.

O pai deu um salto sobre ele e agarrou sua orelha, puxando-a com violência e fazendo com que ele se sentasse no sofá.

– Seu maricas! – vociferou. – Quando vai aprender que não se deixa que brinquem com a honra de um homem?

– Eu não fiz nada… – murmurou, já sentindo o peito estrangular, uma vontade louca de chorar.

– Você, não! Mas aqueles cretinos daqueles garotos chamaram você de bichinha novamente!

Torceu sua orelha com mais força, e Romero choramingou sentido:

– Ai! Por favor, pai, não tive culpa. Foram eles que me xingaram…

– Porque você deixou. Devia ter reagido.

– O que eu poderia fazer?

– Sei lá, ter atirado uma pedra na cabeça deles, dado um murro no queixo, qualquer coisa.

– Eles estavam do outro lado da rua.

– Papai! – foi o grito de Judite, que correu para onde eles estavam. – Solte-o, pai. Não vê que o está machucando?

Embora contrariado, Silas o soltou, não sem antes ofendê-lo mais uma vez:

– Seu mariquinhas! Você só faz me envergonhar.

Saiu desabalado para a cozinha, onde a mãe, à beira do fogão, fungava com os olhos rasos d’água.

– Isso é culpa sua, Noêmia! – berrou para a mulher. – Quem manda criar o menino feito uma donzela?

– Não é verdade, Silas – contestou magoada. – Romero é um menino de ouro.

– Ele é um maricas! Os outros têm razão. Vive se escondendo, só quer saber de ficar grudado na barra da saia da irmã. E você estimula esse comportamento.

– Eu!?

– É, você. Você e Judite. Por isso ele nem tem namorada.

– Mas ele só tem treze anos!

– E o que é que tem isso? Na idade dele, eu já conhecia mulher.

– Você está exagerando. Romero é um menino. Gosta de jogar bola e soltar pipa…

– Se fosse assim, eu não estaria preocupado e nem me importaria com o futuro dele. Mas ele está mais para brincar de bonecas e casinha do que para soltar pipa.

– Você se preocupa demais. Romero é só uma criança. Nem tem idade para se interessar por mulheres. Mais tarde, vai ver como ele muda.

– Mais tarde? Que mais tarde o quê? Vou resolver isso é agora.

Voltou às pressas para a sala, onde Romero assistia televisão, agarrado à Judite. Silas desligou o aparelho e estacou em frente a eles. Dedo em riste, disparou:

– Escute, aqui, Romero, já perdi a paciência com você. Hoje, você vai aprender a ser homem.

– O que quer dizer com isso, pai? – interveio Judite.

– Não se meta, Judite, não é problema seu. O assunto agora é de homem para homem.

– Mas pai – lamentou-se Romero –, o que o senhor vai fazer comigo?

– Vou ensiná-lo a ser um homem de verdade. E ai de você se me decepcionar!

Saiu batendo a porta. Naquele dia, Romero quase não comeu. Vivia pensando nas palavras do pai. Embora ele não dissesse claramente, Romero estava certo de que pretendia levá-lo a alguma mulher. Essa ideia causou-lhe pânico. O que faria diante de um corpo nu de mulher? E se ela o despisse também? Na certa, morreria de vergonha e não conseguiria fazer nada com ela, o que deixaria o pai ainda mais furioso.

Tentou conversar com Judite, mas ela ajudava a mãe com as costuras. Noêmia, todas as tardes, costurava para fora, e era assim que a família conseguia equilibrar o orçamento doméstico, sem que Judite tivesse necessidade de trabalhar fora para ajudar.

– Mamãe? – começou a irmã, enquanto pregava botões numa blusa.

– Hum?

– Por que não faz nada?

– Fazer o quê?

– Por que não impede papai de levar Romero, você sabe onde?

Noêmia pousou a costura sobre os joelhos e olhou para Judite por cima dos óculos.

– Não há nada que eu possa fazer. Você conhece seu pai tão bem quanto eu e sabe como ele é teimoso. E depois, talvez seja bom para Romero. Vai acabar com essa agonia.

Judite fixou-a com ar pensativo e tornou com voz grave:

– E se Romero não gostar?

– Como assim, não gostar? Romero pode ser só um menino, mas é homem. Ele está assustado, mas vai acabar se acostumando.

– Eu não teria tanta certeza.

– O que está querendo dizer, Judite? Que seu irmão não gosta de mulher?

– Não é isso. Mas é que Romero me parece tão inseguro…

– Seu pai acha que já é hora de acabar com os medos e as inseguranças dele, e eu concordo.

Concordava nada. Judite sabia que ela estava mentindo. No fundo, morria de pena do filho, mas não tinha coragem de enfrentar o marido. E ela também não tinha como ajudar. Só lhe restava esperar e torcer para que Romero se saísse bem.

Quando o pai chegou para buscá-lo, já passava das nove horas. Naquele dia, não jantou em casa, e Romero imaginou que ele deveria ter ido a algum prostíbulo combinar tudo. Apesar de seu nervosismo, Silas não fez nenhum comentário. Limitou-se a abrir a porta do quarto e a dizer laconicamente:

– Venha.

Romero obedeceu. Em silêncio, ganharam a rua, caminhando em direção ao ponto de ônibus. Da calçada, Romero pôde ver o rosto da irmã pela janela, tentando lhe transmitir coragem.

– Boa sorte – foi o que leu em seus lábios.

Caminharam até o ponto sem trocar uma palavra. Entraram no ônibus, que rodou alguns minutos, até que desceram em frente ao seu destino. Era uma casinha toda pintada de branco, com janelas azuis e vasos de flores nos peitoris. Romero não conseguiu ocultar a surpresa. Esperava algo bem diferente daquilo. Mas o pai, sabendo de seus receios, escolheu uma moça já conhecida de seus tempos de solteiro, que trabalhava por conta própria. Ela cobrava caro, mas valeria a pena.

Silas bateu e esperou. Pouco depois, a porta se abriu, e uma mulher de seus trinta e poucos anos, vestida numa camisola vermelha transparente, rosto excessivamente pintado, veio abrir.

– Boa noite, Domitila – cumprimentou, com uma certa intimidade.

Ela deu um sorriso e chegou para o lado, dando passagem para que ambos pudessem entrar.

– Então, é esse o rapazinho?

– É sim. O menino está meio assustado, é a primeira vez, você sabe como é.

Ainda sorrindo, Domitila se aproximou e foi segurando-o pela mão, puxando-o para outro cômodo.

– Pode deixá-lo comigo, Silas. Volte em uma hora.

– Lembre-se – sussurrou ao ouvido de Romero –, não me decepcione.

Silas saiu e foi procurar um bar onde pudesse fazer hora até que Domitila terminasse com Romero. Do lado de dentro, o menino tremia. Nem sabia se a mulher era bonita ou feia, pois não ousava levantar o rosto. Estava envergonhado, com medo, inseguro. Ela se acercou dele e, sem dizer nada, começou a tocá-lo em suas partes íntimas. Assustado, tentou fugir, mas ela não lhe deu chance. Estava tão apavorado que quase urinou nas calças.

– Que… quero… ir ao ba… banheiro… – gaguejou.

Com o dedo, Domitila indicou-lhe onde ficava o banheiro, e ele correu para lá. Quando voltou, ela continuava no mesmo lugar em que a deixara, só que agora, completamente nua. Romero quis chorar, mas ela nem lhe deu tempo para isso. Aproximou-se novamente e fez nova investida, acariciando-o e beijando-o por toda parte. Romero queria fugir, mas não sabia para onde. E depois, havia o pai. Se ele o decepcionasse, nem queria pensar no que o pai faria. Era até capaz de lhe dar uma surra.

Mais por medo do que por desejo, Romero conseguiu fazer o que esperavam dele. Foi tudo muito rápido. Ao sentir que ele correspondia, Domitila deitou-se na cama e puxou-o para cima dela, guiando-o apressadamente. Em poucos segundos, estava tudo terminado.

– Pronto, meu bem – falou ela com fingido carinho, empurrando-o para o lado. – Já terminou. Pode sair de cima de mim.

Na mesma hora, Silas correu para o banheiro e vomitou. Sentia-se arrasado, violado em sua intimidade, invadido em seus brios. Com o pé, fechou a porta do banheiro e desatou a chorar, torcendo para que Domitila não fosse perguntar o que estava acontecendo. Mas ela parecia nem ligar. No fundo, julgara-o mesmo um maricas, mas não seria ela que iria questionar aquilo. Se Silas dizia que o menino era másculo, isso era lá com ele. Cumprira a sua parte e esperava receber o seu dinheiro.

Quando Silas voltou, encontrou-os sentados no sofá da sala, ele bebendo um refrigerante, e ela, uma cerveja. Como não tinham o que conversar, permaneceram bebericando, sem trocar palavra.

– E então? – perguntou ansioso. – Como é que foi? Correu tudo bem?

– Muito bem – respondeu Domitila, tentando parecer interessada. – O rapaz escondia o jogo. É um garanhão. Tive que implorar que parasse.

– Não me diga! – tornou Silas, todo orgulhoso, nem percebendo o ar de espanto do filho. – Eu não lhe falei? O que ele tinha era vergonha.

– É. Os quietinhos são os piores.

Silas pagou à Domitila e agarrou Romero pelo braço, saindo com ele em estado de quase euforia.

– Muito bem, meu filho – elogiou. – Sabia que você não iria me decepcionar.Garanhão, hein? Quem diria? Espere só até eu contar para o pessoal. Quero ver quem é que vai mexer com você depois disso. Vão todos morrer de inveja, isso sim.

Romero enrubesceu. Como poderia encarar alguém depois daquilo? Ainda mais se o pai contasse aos outros o que acontecera. O que faria para esconder a vergonha que sentia?

Silas não estava preocupado com os sentimentos de Romero. Estava tão feliz que sequer se lembrara de lhe perguntar se ele havia gostado ou como se sentira. A única coisa em que pensava era que seu filho, ao contrário do que diziam, não era nenhuma bicha.

Só que Romero, longe de compartilhar da alegria do pai, sentia-se frustrado e deprimido, desejando jamais ter que passar por aquilo novamente.

Até Que A Vida Os Separe



Quando alguma coisa se vai, é porque não precisamos mais dela, e uma outra melhor irá aparecer.

As trocas de energias falam mais do que as palavras no trato entre as pessoas, criando os laços de simpatia ou rejeição. Interferem também nesse processo nossas afinidades, os valores psicológicos e culturais, os preconceitos, os interesses.

No dia-a-dia, você seleciona as amizades e pode controlar bem as diferenças, mas o que dizer das relações familiares, quando a Vida coloca em seu caminho pessoas com as quais vai ter de relacionar-se por toda a vida?

O que fazer quando você ama um filho e rejeita outro, mergulhando na culpa sem encontrar explicações para seus sentimentos?

A causa vai além da simples troca de energias do cotidiano e está oculta em problemas mal resolvidos de outras vidas que voltam em busca de solução.

Por mais que tente, não conseguirá afastar essa pessoa de seu convívio. Ela estará por perto até a solução. Ou, se preferir: até que a vida os separe.

Capítulo 1

Tudo estava pronto para a grande cerimônia daquela noite. Após muitos anos de dedicação e sacrifício, Paulo ia, finalmente, ser reconhecido pelo seu trabalho. Seu pai, Hermínio, resolvera se aposentar e passara a presidência da empresa ao filho, e encomendara uma bonita festa para comemorar a ocasião.

Hermínio, desde cedo, se dedicara ao ramo dos transportes. Começou fazendo pequenas viagens com um caminhão alugado e, aos poucos, foi progredindo, até que pôde comprar seu próprio caminhão. Com o tempo e muita economia, foi juntando dinheiro e adquirindo outros veículos, até que conseguiu uma frota invejável, transportando cargas por todo o país. Os negócios prosperaram rapidamente, e Hermínio e a esposa, Dulce, viram sua vida mudar e logo passaram a fazer parte da alta sociedade carioca.

Quando os filhos nasceram, sua felicidade foi completa. Paulo, o mais velho, logo se interessou pelos negócios do pai e formou-se em administração de empresas, estando apto a seguir-lhe os passos. A filha, Mariana, cedo casou-se com Marcos, um dos diretores, e não tinha filhos.

Paulo estava feliz. Seu pai enriquecera por mérito próprio e pudera proporcionar-lhes todo o conforto que o dinheiro podia comprar. E tudo com honestidade, sem precisar lograr nem roubar ninguém. Há muito Paulo se preparara para ocupar o lugar do pai e hoje estava prestes a realizar seu maior sonho, tornando-se presidente da empresa.

Estava em frente ao espelho ajeitando a gravata quando viu a mulher entrar no quarto. Flávia usava um bonito vestido cor de cereja, que contrastava com sua tez morena clara e seus profundos olhos negros.

Ela olhou para o marido pelo espelho e sorriu, instintivamente apalpando a barriga. Fazia três meses que estava grávida, e aquela gravidez era-lhe motivo de grande alegria. Desde que se casara, fazia quase cinco anos, não conseguira ainda engravidar uma única vez. Por isso, sentia-se realizada com a proximidade da maternidade.

Flávia ia passando em direção ao guarda-roupas para apanhar o casaco, mas parou subitamente e deu meia-volta, indo em direção à porta do quarto.

– Aonde vai? – indagou Paulo contrariado. – Já está quase na hora. Não quero me atrasar.

Ela deu uma meia parada da soleira da porta e respondeu displicente:

– Não se preocupe, querido. Vou apenas ao banheiro. Senti uma cólica… Acho que estou com dor de barriga.

– Mas logo agora? Que azar!

Flávia não respondeu e entrou no banheiro, fechando a porta atrás de si. De repente, sentiu uma pontada no ventre e fez uma careta de dor, apertando a barriga e dobrando o corpo para a frente. No mesmo instante, sentiu que algo quente escorria por suas pernas e olhou para baixo. Sobre o ladrilho branco do banheiro, o sangue começava a se espalhar. Apavorada, Flávia soltou um grito, chamando pelo marido:

– Paulo! Socorro, Paulo, acuda!

Ouvindo os gritos desesperados da mulher, Paulo largou o que estava fazendo e correu em direção ao banheiro. Empurrou a porta e entrou, bem a tempo de segurá-la, antes que caísse no chão, pois desfalecera naquele exato instante. Rapidamente, Paulo ergueu-a no colo e levou-a para a cama, ajeitando-a sobre os travesseiros. Apanhou o telefone e ligou para o doutor Feliciano.

– O doutor Feliciano não está – respondeu uma voz do outro lado da linha.

Paulo agradeceu e desligou o telefone. Feliciano, na certa, já havia ido para a festa. Aturdido, apanhou a chave do carro e chamou a governanta, que apareceu logo em seguida, suando e esbaforida.

– Chamou, doutor Paulo?

– Olívia, pelo amor de Deus, ajude-me aqui. Dona Flávia não se sente bem…

Ao ver o estado de sua patroa, Olívia soltou um grito assustado. Ela estava deitada, pálida, o vermelho do vestido se misturando ao vermelho de seu sangue.

– Doutor! – exclamou atônita. – O que aconteceu?

– Não sei, Olívia, e não é hora de perguntas. Ajude-me a levá-la até o automóvel.

Em silêncio, Olívia ajudou o patrão a levantar a mulher e conduzi-la até o carro. Paulo entrou apressado, sem dizer nada, deu partida no motor e saiu em disparada, cantando os pneus. Estava apavorado. Ia perder a cerimônia, mas temia muito mais a perda da esposa amada.

Com os solavancos, Flávia despertou, sentindo muitas dores no ventre.

– Paulo… – balbuciou angustiada. – O que houve? O bebê…

– Não fale, querida. Não há de ser nada.

– Aonde está me levando?

– Ao hospital.

– Hospital? Não quero. Quero o meu médico.

– Feliciano não estava em casa. Não tive outro remédio senão trazê-la para o hospital – vendo o ar de apreensão da esposa, tentou tranquilizá-la: – Sossegue, meu bem. Vai dar tudo certo.

Flávia não disse nada. Esperou até que chegassem ao hospital e fosse atendida. Depois que a mulher foi levada para dentro da sala de emergência, Paulo saiu em busca de um telefone. Precisava avisar alguém. Ligou para o clube onde a solenidade se realizaria e pediu para falar com seu pai. Demorou um pouco até que ele atendesse.

– Alô? Paulo, é você? O que está acontecendo, meu filho? Onde está? Estamos todos preocupados…

– Sossegue, papai. Vou me atrasar, talvez até nem possa ir.

– Não pode vir? Por quê? Onde está?

– Estou no hospital, pai.

– Hospital? O que aconteceu? – silêncio. – Foi a Flávia? Ela perdeu o bebê?

Tentando conter as lágrimas, Paulo retrucou:

– Não sabemos ainda…

Desligou. Não podia mais continuar. Do outro lado da linha, Hermínio, preocupado, continuava falando com o aparelho mudo:

– Alô? Paulo, meu filho, responda! Em que hospital está? Alô? Alô?

Depois de colocar o fone no gancho, Paulo olhou com tristeza para a atendente no balcão, que lhe havia cedido o telefone, e balbuciou:

– Obrigado…

Desabou num banco de madeira encostado na parede do corredor, chorando copiosamente. Tantas esperanças depositadas naquele filho! A família inteira já comemorava sua chegada. Haviam comprado móveis, pintado o quarto de amarelo, preparado um enxoval lindo e rico. E para quê? Para nada.

Quando Flávia anunciou que estava grávida, depois de quase cinco anos de casamento, ninguém sequer cogitou que aquilo pudesse acontecer. Finalmente, o herdeiro que tanto esperava iria nascer. Paulo preferia um menino, para continuar seu nome e os negócios, mas uma menina também seria bem-vinda. Ainda que Flávia não pudesse ter outros filhos, menino ou menina, seriam ambos bem recebidos em sua casa e em seu coração.

Paulo estava tão absorto nesses pensamentos que nem ouviu a enfermeira se aproximar. Ela parou diante dele, tocou levemente o seu ombro e indagou:

– O senhor é o marido de dona Flávia?

Paulo ergueu os olhos para ela, como que tentando entender o que estava acontecendo. Finalmente respondeu:

– Sim, sou eu. Como ela está?

– Sua mulher passa bem, senhor. Infelizmente, porém, lamento informá-lo de que perdeu o bebê.

Ele fechou os olhos por uns segundos, remoendo toda a sua dor, até que reuniu forças para falar:

– Posso vê-la?

A enfermeira balançou a cabeça e indicou uma porta no fim do corredor, dizendo com voz compreensiva:

– Por aqui.

Paulo seguiu-a em silêncio até o quarto onde a esposa estava adormecida, pálida feito um boneco de cera. Vendo-a tão frágil, tão insegura, sentiu um aperto no coração e uma vontade louca de estreitá-la em seus braços. Amava-a profundamente, e o seu sofrimento era-lhe motivo de grande pesar. Ele sabia o quanto de expectativas Flávia havia depositado naquele filho, mas tudo havia sido em vão.

Vagarosamente, Paulo se aproximou de sua cama e ficou a olhá-la. Não queria acordá-la, achava que era melhor deixá-la dormir. Ia se afastando para não perturbá-la quando ouviu a sua voz:

– Paulo…

Ele se voltou com lágrimas nos olhos e a encarou. Flávia, no mesmo instante, pôs-se a chorar, balbuciando:

– Perdoe-me, querido… Foi minha culpa… Não devia ter feito tanto esforço, não devia!

– Chi! Acalme-se, meu amor. Não foi nada. Teremos outros filhos, você vai ver.

– Não, não! Sinto que não terei outra chance.

– Não fale assim. Você não pode saber. É jovem ainda, tem apenas vinte e três anos.

– Mas eu sei! Eu sinto!

Nesse instante, a porta se abriu e um homem todo vestido de branco entrou, e Paulo deduziu que devia ser o médico. Já era um senhor e se aproximou da cama com ar bondoso, pegando no pulso de Flávia.

– Como se sente?

– Bem… mais ou menos…

– Era seu primeiro filho?

– Sim…

– Não se deixe impressionar pelo que aconteceu. Há mulheres que perdem a primeira gravidez, mas depois engravidam e têm muitos filhos.

Flávia não disse nada. Pensou em responder, mas achou melhor ficar calada. Ele era apenas um médico de emergência e nunca mais voltaria a vê-la. O que sabia de sua vida?

– Doutor, quando poderei levá-la? – quis saber Paulo.

– Creio que amanhã pela manhã, se tudo correr bem.

– Isso é que não! – contestou Flávia. – Vou-me embora agora mesmo.

– Mas a senhora não deve… – protestou o médico. – Perdeu muito sangue. É melhor que fique em observação.

– O doutor tem razão, querida – interrompeu Paulo. – É melhor que fique e descanse.

– Mas Paulo, e a sua festa? Não quero estragar sua festa. Essa noite deveria ser sua.

– Não se preocupe com isso. Papai entenderá…

– Não! – cortou ela rispidamente e olhou para o médico, encabulada.

Percebendo que o casal tinha assuntos íntimos a tratar, o médico pediu licença e se retirou.

– Bem, tenho alguns pacientes para ver. Se precisar de alguma coisa, aperte a campainha e uma enfermeira virá atendê-la. Boa noite.

– Boa noite – responderam em uníssono.

Depois que ele saiu e fechou a porta, Flávia apertou a mão de Paulo e, olhando-o fundo nos olhos, declarou:

– Por favor, Paulo, prometa-me que não vai contar nada ainda.

– Mas Flávia, por quê? Todos terão que ficar sabendo um dia.

– Eu sei. Mas não agora. Dê-me um tempo até eu me acostumar. Depois, eu mesma lhes darei a notícia.

– Não sei, Flávia. Talvez seja pior.

– Por favor, Paulo, é só o que lhe peço. Não diga nada. Principalmente a minha mãe. Você sabe o quanto ela queria esse neto.

Paulo olhou-a em dúvida e considerou:

– Mas Flávia, já disse a meu pai que você estava no hospital.

– Ah! não, Paulo… Disse a ele que perdi o bebê?

– Não disse nada. Disse que não sabia ainda.

Um sorriso de esperança iluminou o seu rosto.

– Então não conte. Por favor, Paulo, eu lhe suplico. Não tenho forças para encará-los agora.

– Mas Flávia, o que lhes direi?

– Diga apenas que eu passei mal, mas que já está tudo bem.

– Para que isso, Flávia? Vão ficar sabendo, mais cedo ou mais tarde.

– Que seja mais tarde.

Embora a contragosto, Paulo fez como ela lhe pediu. A muito custo ela conseguiu convencê-lo a deixá-la no hospital durante a noite e ir para o clube, sem dizer nada. Quando Paulo chegou, já passava das dez horas, e muitos dos convidados já haviam ido embora. Hermínio tencionava passar a suas mãos uma placa simbólica, representando a transferência da presidência, mas apenas fez um breve discurso, desculpando-se com os presentes pela ausência do filho. Dissera apenas que a nora passara mal e ele tivera que levá-la a um hospital.

Quando Paulo chegou, Feliciano foi o primeiro que o viu e correu ao seu encontro, exclamando assustado:

– Paulo! Graças a Deus! Morríamos de preocupação. Como está Flávia?

– Ela está bem agora.

– Por que não mandou me chamar?

– Eu liguei para sua casa, mas você não estava.

– Paulo, meu filho! – era Dulce, que chegava apressada. – O que foi que houve? Onde está Flávia?

Em breve, Paulo se viu cercado de parentes e amigos, todos querendo saber o que havia acontecido. Em poucas palavras, Paulo lhes dissera que Flávia sentira um ligeiro mal-estar e tivera que ser socorrida às pressas, mas já estava bem, em casa, descansando. O médico do hospital, apesar de liberá-la, aconselhara-a a guardar o leito, sob pena de pôr em risco a vida do bebê.

– Irei vê-la imediatamente – falou Feliciano decidido.

Paulo segurou-o pelo braço e gaguejou:

– Não… não será preciso… Ela está bem… Pediu para não ser perturbada.

– Ora essa, Paulo – indignou-se Dulce. – Onde já se viu uma coisa dessas? Feliciano é seu médico!

– Eu sei, mamãe, mas ela pediu para avisar a todos que já está bem e que gostaria de descansar. Amanhã, iremos ao seu consultório.

Feliciano deu de ombros e acrescentou:

– Vocês é que sabem.

– Mas eu irei vê-la – disse Inês, mãe de Flávia. – Onde já se viu uma filha recusar a companhia da mãe?

– Dona Inês, entenda. Flávia só está descansando. Fique sossegada que, amanhã, irei pessoalmente buscá-la em sua casa.

A muito custo conseguiu convencê-la. Paulo permaneceu no clube por mais duas horas. O jantar já havia sido servido, e ele foi com o pai assinar os papéis que o legitimavam como o novo presidente da companhia. Via Láctea Transportes S/A, era o nome da empresa. Uma sociedade anônima bem constituída, com ações em alta no mercado, sendo que sessenta por cento continuavam em poder da família Lopes Mandarino. Sua família.

No dia seguinte, Flávia saiu bem cedo do hospital, em companhia de Paulo. Iam silenciosos, remoendo sua frustração, tentando acreditar nas palavras do médico: ela era jovem, poderia ter outros filhos.

Quando chegaram à casa, era muito cedo e Olívia ainda dormia. Mais meia hora e estaria de pé. Paulo seguiu com Flávia para o quarto e acomodou-a na cama, deitando-se a seu lado e adormecendo logo em seguida. Estava exausto e não dormira a noite inteira.

Por volta das oito horas, acordou e olhou para o relógio. Já era tarde, mas não se sentia com disposição para levantar. Ficou deitado na cama, ouvindo a respiração suave da mulher, que dormia placidamente, até que escutou batidas leves na porta. Ele suspirou, levantou-se e foi atender. Era Olívia, que vinha saber de seus patrões. Quando fora se deitar, já era tarde e eles ainda não haviam voltado.

– Graças ao Pai que chegaram! – exclamou Olívia, as mãos postas em sinal de oração. – Rezei tanto a Deus por dona Flávia!

– Obrigado, Olívia.

– Como está a patroa?

– Bem. Está dormindo.

– E o bebê?

– O bebê está ótimo.

– Bendito seja! – acrescentou, erguendo as mãos para o céu. – Chegaram agora?

– Ontem à noite. Você estava dormindo e não quisemos acordá-la.

Olívia balançou a cabeça e indagou solícita:

– Quer que lhe traga o desjejum?

– Obrigado, Olívia. Apenas uma xícara de café.

Depois que ela saiu, Paulo apanhou o telefone na mesinha-de-cabeceira e pediu uma ligação para o consultório de Feliciano.

– Alô? Feliciano?

– Paulo? Como vai, meu amigo? E Flávia?

– Está bem. Já passou.

– Vai trazê-la aqui hoje?

– Creio que não será necessário. Ela já está melhor e não sente nada. Como disse, foi apenas uma indisposição.

– Não acha melhor que eu a examine? Para sua segurança e do bebê.

– Agradeço a preocupação, Feliciano, mas ela não está disposta a sair. Está um pouco cansada.

– Se quiser, posso passar em sua casa mais tarde.

Ouvindo a voz do marido, Flávia despertou, esfregou os olhos e recostou-se na cama, lançando para ele um olhar súplice.

– Está bem, Feliciano. Agradeço.

Paulo desligou o telefone e olhou para Flávia, que perguntou:

– Era Feliciano? – ele assentiu. – O que disse a ele?

– Nada. Mas quer vê-la.

– Não consentirei!

– Flávia, deixe de loucura. Logo todos ficarão sabendo. E pensa que poderá esconder isso justo de Feliciano? Seu médico?

– Por isso mesmo não quero vê-lo.

– Mas ele virá aqui mais tarde.

– Arranje um jeito de dispensá-lo.

– Não posso fazer isso. Deixe que venha, que a examine.

– Ficou louco?

– Flávia, por favor…

– Já disse que não – ela fez uma pausa e considerou: – Está bem. Vou deixar que me examine… superficialmente. Nada de exame ginecológico.

Paulo inspirou profundamente e não disse nada. Olívia chegou com a bandeja e colocou-a sobre a mesa, feliz por ver a patroa já acordada.

– E então, dona Flávia, sente-se bem?

– Muito bem, Olívia, obrigada.

– Se precisar de alguma coisa é só chamar. Estarei na cozinha.

– Obrigada, Olívia.

Mais tarde, quando Feliciano chegou, Flávia disfarçou a fraqueza e o cansaço, empoou o rosto e mostrou-se alegre e bem disposta, fazendo de tudo para que ele não percebesse que havia perdido o bebê. Deixou que ele medisse sua pressão e a temperatura, mas quando ele quis examinar-lhe o ventre, Flávia deu um salto da cama e correu para o banheiro. Trancou a porta e fez que estava vomitando. Em seguida, voltou para o quarto com a mão sobre a barriga e enxugando a boca, dizendo num gracejo:

– Coisas de mulher grávida…

Feliciano ainda tentou fazer com que ela retornasse ao exame, mas Flávia disfarçou e foi para a cozinha.

– Você se preocupa demais – disse com ironia. – Coisas de médico…

Paulo não ousava sustentar-lhe o olhar, e Feliciano deu de ombros. Seguiu Paulo até a sala, onde Olívia lhes serviu um café, conversou durante mais alguns minutos e se foi. Logo que ele saiu, Flávia correu de volta ao quarto e se atirou na cama, chorando sem parar.

Por mais que tentasse, Paulo não conseguia animá-la. Os dias foram passando e Flávia foi se sentindo cada vez mais triste. Não saía, não se alimentava direito, não falava com ninguém. Só com a mãe. Apesar de tudo, não tivera coragem de contar-lhe a verdade, e Inês não conseguia entender o porquê de todo aquele abatimento.
Até que um dia, não aguentando mais, Paulo teve uma ideia.

– Flávia, estive pensando. Acho que seria bom fazermos uma viagem.

– Viagem? Agora? Mas, e a empresa? Você acabou de assumir a presidência. Não pode se afastar.

– Já falei com papai. Há anos não tiro férias. Disse-lhe que ando muito cansado e que preciso de descanso.

– Mas… mas… e a presidência da companhia?

– Marcos pode assumir o meu lugar e tomar conta de tudo até que eu volte. Sabe o quanto confio nele.

– E ele concordou?

– Sim. É meu cunhado, pessoa de inteira confiança.

– E seu pai?

– No princípio relutou. Mas acabou concordando também.

– Uma viagem… talvez seja uma boa idéia. Afastar-me de tudo e de todos.

– Foi o que pensei. E depois, você poderá escrever, contando que perdeu o bebê na viagem. Creio que assim será menos penoso.

– Acha que me faria bem? – ele fez que sim. – E para onde iremos?

– Pensei em visitarmos a Europa.

– Europa? Não sei, não. Andam falando em guerra por lá.

– Não acredito nisso. São apenas boatos. Por favor, Flávia, vamos. Não aguento mais vê-la nessa depressão.

Flávia considerou a hipótese por alguns minutos. Embora não se sentisse com ânimo para nada, uma viagem até que serviria bem aos seus propósitos. Escreveria uma carta para a família logo que partissem, contando da perda do bebê, e não precisaria estar presente para ver a sua cara de frustração. Ao voltar, muito tempo já teria passado, e não lhe cobrariam mais nada.

– Está certo – disse por fim. – Faremos a viagem. Quanto mais tempo ficarmos fora, melhor.

– Excelente, querida! Vou agora mesmo providenciar os passaportes e as passagens. Quero visitar tudo!

 Quanto tempo ficaremos fora?

– Não sei. Dois meses, três… O tempo que julgarmos necessário.

Quinze dias depois, partiram rumo à Europa. Iniciaram sua viagem por Londres. De lá, atravessariam o canal da Mancha e iriam para a França, onde tomariam o trem e seguiriam rumo à Espanha e Portugal, retornando novamente em direção à Itália e Suíça. E, dependendo da situação, visitariam ainda a Áustria, a Alemanha e a Holanda, e então retornariam. Seria uma viagem maravilhosa. E inesquecível também.

Com o Amor Não se Brinca



Não se domina um sentimento fingindo que ele não existe.

Há quem diga que o amor é a base de tudo, porém eles se esquecem de que:

Há os que se anulam em nome do amor e acabam abandonados.

Há os que investem em tudo nos outros acreditando que serão correspondidos e vivem reclamando do egoísmo alheio.

Há os que sonham com um amor perfeito, pretendem encaixar o ser amado nesse modelo e acabam descobrindo que cada um é como é e não temos poder para mudar ninguém.

Há os que confundem paixão com amor. Não percebem que a paixão é admirar no outro o que recalca em si. Quando a ilusão projetiva desaparece percebemos o ridículo dos nossos atos apaixonados.

Há os que confundem apego com amor. São egoístas que esperam do outro exatamente o que não se dão.

O amor verdadeiro nunca faz sofrer. Traz alegria, motivação e prazer, agindo sempre com seu poder de harmonizar as relações humanas.

Quando ser feliz passa a ser um objetivo sério nós logo percebemos que com o amor não se brinca.

Capítulo 1

O dia amanheceu chuvoso e frio, mas todos estavam de pé logo cedo, prontos para seguir a urna funerária até o pequeno cemitério da fazenda, onde Licurgo seria enterrado ao lado da filha, Aline, e do genro, Cirilo. O cortejo seguia em silêncio, Palmira estampando no semblante toda a dor e a tristeza de haver perdido o companheiro de tantos anos. A seu lado, os filhos, Fausto e Rodolfo, tentavam ampará-la e consolá-la da melhor forma possível. Um pouco mais atrás, Camila, filha de seu primeiro casamento, ia cabisbaixa ao lado do marido e dos filhos, Dário e Túlio, talvez recordando as agruras por que passara naquelas terras. Junto dela, sua irmã, Zuleica, já bastante idosa, seguia de braços dados com a filha, Berenice.

Ao fundo, Terêncio, o capataz, chorava em silêncio. Amara seu Licurgo e sentiria muito a sua falta. Sabia que nem todos ali gostavam dele e muita coisa ele já fizera a seu serviço, mas Licurgo sempre estivera a seu lado, protegendo-o e defendendo-o, até da própria filha. Mas agora, o que seria dele? Já estava velho também. O que iria fazer se o mandassem embora? Abaixou a cabeça e começou a chorar, até que sentiu uma mão pousar sobre seu ombro e virou-se bruscamente. Era Aldo, o outro capataz, que lhe sorriu compreensivo. Ele respondeu ao sorriso com outro, meio sem jeito, e desvencilhou-se do companheiro, indo postar-se bem atrás de dona Palmira.

Parada um pouco mais além, uma mulher ocultava o rosto no manto de veludo negro e puído que lhe caía sobre as costas. Assistia a tudo à distância, e apenas seus olhos eram visíveis. Havia muita gente no enterro, e ninguém lhe prestou atenção. Apenas Terêncio, ao passar por ela, fitou o seu rosto, e uma sombra de reconhecimento perpassou-lhe a mente. Aquela mulher era-lhe familiar, mas não se lembrava de onde a conhecia. No entanto, aqueles olhos… onde já vira aqueles olhos escuros, de um verde quase cinzento?

Terminada a cerimônia fúnebre, todos voltaram para casa, e Palmira ia pensando em sua vida. O marido morrera já bem idoso e lhe deixara dois filhos maravilhosos. Olhando para eles, sentiu um aperto no coração. Eram gêmeos idênticos, e ela quase morrera ao dar-lhes a luz. Lembrou-se do parto difícil que tivera e do dilema para amamentá-los, tendo que contar com o leite de Tonha, para não matar seus meninos de fome.

Assim como Palmira, a negra Tonha também tivera um parto dificílimo, e a criança, pobrezinha, não resistira. Josefa e a velha Maria, antigas escravas da fazenda, tudo fizeram para salvá-la, mas o pequeno nascera mesmo sem vida. Tonha erguera o corpo do filhinho morto e chorara. Fora melhor assim. Ao menos a criança não teria o desgosto de viver como escrava. Seu filho nascera livre. Ao morrer, sua alma se libertara, e ele jamais conheceria o peso da chibata.

Por uma estranha coincidência, Palmira estava para dar à luz na mesma época em que Tonha. Quatro dias depois de o bebê de Tonha nascer, quando ela já havia voltado para a senzala, sentindo ainda as dores do parto, Palmira começou a sentir contrações, e a parteira foi chamada às pressas. Palmira tivera gêmeos e precisava de uma ama-de-leite para alimentá-los. Mandaram chamar a Josefa, indagando-lhe quem tivera filhos pela mesma época, que pudesse amamentar os pequenos. Contavam com uma negra forte e robusta, de nome Jacinta, que tivera filho poucos dias antes. Jacinta, no entanto, não resistira ao parto e morrera. Josefa, acabrunhada, respondeu:

– Sinto muito, sinhá, mas a única escrava assim é a Tonha. Jacinta teve criança, mas morreu…

– Tonha? Não quero aquela negra nojenta.

– Então, a sinhá me desculpe, mas não tem outra, não.

– Não é possível que ninguém mais tenha dado cria por esses dias – objetou Licurgo.

– Não deu não, sinhô. Tenho certeza.

– E agora, Licurgo – considerou Palmira –, o que vamos fazer? Não tenho leite para os meninos.

Josefa abaixou os olhos e ficou à espera de que lhe dissessem o que fazer. Licurgo mandou que ela saísse e esperasse na cozinha. Iriam resolver e, então, mandariam chamá-la. Logo que ela saiu, Palmira virou-se para o marido e exclamou:

– Não vou aceitar o leite daquela negra assassina!

– Palmira, pense bem. A idéia também não me agrada, mas não temos escolha.

Nenhuma outra escrava deu cria por esses dias, só a Tonha.

– Não, não quero. Mande Terêncio à vila comprar uma escrava leiteira.

– Mas minha querida, e se não houver nenhuma à venda?

– Então mande-o à vila vizinha. E mande o Aldo a outra. Alguém há de encontrar uma ama-de-leite.

– E enquanto isso, nossos filhos morrem de fome? Pense bem, Palmira, uma escrava leiteira não é assim tão fácil de se encontrar. E isso pode levar dias.


– Oh! Licurgo, por que não pensou nisso antes de nossos filhos nascerem?

– Eu pensei. Jacinta seria nossa ama-de-leite, mas teve que morrer. Que azar!

– E agora?

– Sinto muito, meu bem, mas não vejo outra saída. Temos que chamar a Tonha.

– Já disse que não quero aquela negra. Perdemos três filhos por causa dela, não haveremos de perder outros dois.

– Palmira, seja razoável. Na verdade, nós sabemos que Tonha não matou ninguém.

– Como é que sabe? Afinal, só ela sobreviveu. Não acha isso estranho?

– Por que ela faria isso? Estava apaixonada, iria ganhar a liberdade. Não vê que isso não faz sentido?

– Não sei. Vingança. Como vou saber o que se passa no coração desses negros ingratos? Não, meu caro, me desculpe, mas tenho todos os motivos do mundo para odiá-la e não a querer perto de nossos filhos.

Licurgo, durante alguns segundos, estacou e ficou olhando para a mulher. Não fazia nem um ano que perdera Aline, sua filha, e lembrava-se de tudo como se fosse ontem. Lembrou-se de que dera Tonha de presente a Aline quando ela era ainda menina, e que a escrava passara a ser sua protegida. As meninas cresceram juntas e, por uma cruel ironia do destino, Inácio, sobrinho de Palmira, por ela criado como se fosse seu próprio filho, acabou se apaixonando pela negra Tonha, com quem mantivera sigiloso romance. Aline, por sua vez, casara-se com Cirilo, filho do primeiro casamento de Palmira, e irmão de Camila. Contudo, Constância…

Ele se lembrava bem de Constância. Uma moça linda, filha de Zuleica, irmã de Palmira, era uma das preferidas no coração da mulher. Constância também se apaixonara por Inácio e tudo fizera para afastá-lo de Tonha. Não fosse seu ódio por Aline também, e ele, Licurgo, nem teria se importado com suas maldades para com a escrava. Mas Constância pretendia atingir também Aline, e isso ele não podia permitir e acabou por expulsá-la dali. Depois soubera que a moça voltara para a corte e que fugira logo após o casamento de Aline. Para onde fora? Ninguém o sabia.

Os olhos de Licurgo se encheram de lágrimas quando se lembrou da noite de núpcias da filha. Ele fora chamado às pressas por causa de um incêndio na fazenda Ouro Velho, para onde ela e Cirilo haviam ido, juntamente com Tonha e Inácio. Inexplicavelmente, um incêndio começara, talvez por causa de um monte de palha seca deixado sob a janela do quarto dos noivos. O incêndio destruíra toda a ala sul da mansão, e Aline, Cirilo e Inácio padeceram sob as chamas. Apenas Tonha se salvara. Disseram-lhe que Aline, tentando salvar a negra, empurrara-a para fora do quarto no exato instante em que uma pesada viga desabou sobre ela. Fora uma tragédia horrível, e só Tonha sobrevivera.

Pensando nisso, Licurgo não podia recriminar Palmira. Fora muito estranho, era verdade, e ele quase mandara matar a negra. Ao invés disso, optara por fazê-la sofrer todas as dores e humilhações de sua condição de escrava, atirada na senzala, experimentando na carne a ponta afiada do chicote.

Voltando à realidade, Licurgo considerou:

– Eu sei. Não tiro seus motivos. Em todo caso, não acredito que tenha sido ela. E depois, creio que ela já pagou um preço muito alto pelo seu atrevimento. Vamos, Palmira, reconsidere, pelo amor de Deus! As crianças estão famintas e precisam de leite. Ou quer que elas morram de fome?

Ao ouvir isso, Palmira não teve outro remédio senão aceitar o leite de Tonha. Afinal, era uma escrava e estaria apenas cumprindo suas ordens. Desse dia em diante, Tonha abandonou a senzala e voltou para dentro de casa, alojando-se no quarto dos meninos. Seria responsável pela sua criação, mas que não contasse com favores especiais. Cumpriria seu dever com zelo e perfeição, porque era uma escrava e devia obediência a seus senhores. Mas não fosse esperando tratamento especial por causa disso. Ela fora chamada apenas porque as crianças precisavam de leite, e não por uma deferência ou preferência pessoal. Era apenas um dever que tinha a cumprir, e Palmira esperava que ela o desempenhasse da melhor forma possível. Caso contrário, voltaria para a senzala, não sem antes passar pelo tronco.

Foi assim que Tonha passou a ama-seca dos meninos. A princípio, seria responsável por eles apenas durante o período de amamentação e, logo em seguida, voltaria para a senzala. No entanto, Tonha desvelou-se em atenção e carinhos para com Fausto e Rodolfo, e os meninos acabaram se apegando a ela. Embora Palmira e Licurgo tudo fizessem para levá-la de volta à senzala, o fato é que as crianças viviam a chamá-la e só iam para a cama se ela fosse junto, para contar-lhes as histórias maravilhosas que conhecia. Palmira não deixou de sentir uma pontadinha de ciúmes, mas acabou cedendo à vontade dos filhos, e Tonha foi ficando. Mesmo depois que cresceram, ela continuou como escrava de dentro, substituindo a velha Josefa, que falecera alguns anos antes.

Nesse ponto, alcançaram a casa grande, e Palmira pediu licença para se retirar. Estava cansada e precisava repousar. Afinal, já ultrapassara os setenta anos e as fortes emoções dos últimos dias acabaram por deixá-la extremamente fatigada. Já ia subindo as escadas quando ouviu a voz da filha atrás de si:

– Quer que lhe faça companhia, mamãe?

– Não, Camila, obrigada. Preciso ficar sozinha um pouco.

Subiu vagarosamente. A cada degrau que avançava, ia pensando na filha. Camila fora uma moça bonita e inteligente, embora sem juízo algum. Perdera a honra para um canalha, de nome Virgílio, a mando de Basílio, um antigo namorado, que armara uma trama para levá-la ao altar, só para ficar com seu dinheiro. Mas Camila, para surpresa geral, não aceitou desposá-lo, optando por entregar a vida a Deus e enclausurando-se num convento em São Paulo. No entanto, poucos anos após a sua partida, Palmira recebera a notícia de que ela iria se casar. Foi um alvoroço geral. Ninguém podia compreender o que havia se passado. Mais tarde, quando Palmira e Licurgo chegaram para o casamento, foi que souberam de tudo. O rapaz, Leopoldo, era sobrinho da madre-superiora e se encantara com ela, tendo sido logo correspondido. A princípio, a madre não quis permitir, julgando aquele amor uma blasfêmia. Mas depois, vendo que os jovens se amavam sinceramente, e não tendo Camila ainda feito os votos, resolveu ceder. Os dois se casaram em cerimônia simples e sem luxo, e continuaram a viver em São Paulo, onde Leopoldo era dono de próspero negócio.

Apesar de tudo, Palmira ficou feliz. Não desejava mesmo que a filha terminasse seus dias num convento, embora concordasse que, dada sua condição de moça desonrada, aquela seria a melhor solução. No entanto, se Camila encontrara um homem que a aceitara do jeito que era, e que não se importava em desposar uma moça já deflorada, para ela estava tudo bem. Licurgo também ficou satisfeito. A enteada já lhe havia dado trabalho demais, e seria um alívio saber que estaria segura e bem cuidada por um homem que a amasse e a sustentasse.

Palmira chegou a seu quarto e se deitou, virando-se para a janela e olhando o horizonte. Já era quase meio dia, e o céu continuava cinzento, com nuvens ameaçando chuva. Estava cansada, muito cansada. Vivera muitos anos ali, naquela fazenda, sob a guarda de Licurgo, e fora feliz com ele. Ao contrário do que muitos diziam, ele não fora um homem impiedoso e cruel; fora justo. Ainda com a imagem do marido no pensamento, adormeceu. Já não o tinha mais, mas ao menos possuía filhos. Eles, com certeza, não a abandonariam, e ela podia estar certa de que terminaria seus dias ali, junto dos seus.

Sentindo na Própria Pele



Como pode alguém viver sem a sua própria vida?

Nada substitui a experiência. Entretanto, quando você se apressa em julgar as atitudes alheias segundo seus próprios padrões, acredita estar de posse da verdade.

Quanta ilusão!

Como saber o que vai no íntimo dos outros?

Como avaliar emoções que você nunca sentiu? Como saber o que vai além das aparências?

Como descobrir os limites da sua resistência e certas tentações, se você nunca foi tentado?

A vaidade faz crer que você sabe a melhor solução para os problemas dos outros.

A sabedoria da vida tenta mostrar-lhe o relativismo do seu julgamento, trabalhando sua inteligência de várias formas, mas se você resiste, apegado aos próprios conceitos, ela coloca em sua vida uma situação igual à que você criticou, para que, sentindo na própria pele, você possa compreender esse relativismo e aprenda a respeitar a privacidade dos outros.

Capítulo 1

Tonha olhou pela porta aberta da senzala com olhos embaciados e tristonhos. Estava confusa e amedrontada, as mãos trêmulas a demonstrar as marcas que o peso dos anos lhe imprimira no corpo. Seus 97 anos, vividos entre o medo e as lágrimas, já se ressentiam dos inúmeros e sucessivos anos de luta e sofrimento, de angústia e desespero, da falta de amor e de solidariedade que presenciara tantas vezes.

Estava assim a cismar quando João, um negrinho bastante jovem ainda, apareceu na porta e indagou:

– E então, vó Tonha, não vem?

Tonha olhou-o com admiração, surpresa com a sua presença, e respondeu hesitante:

– O que disse?

– Perguntei se você não vem. A caravana já está pronta para sair, e todos já estão reunidos no terreiro. Só falta você.

Tonha desviou o olhar e fitou o horizonte, como que se lembrando do que estava acontecendo. Sim, pensou, era hora de partir. Mas partir para onde? O que seria de sua vida, dali para a frente? Há muito sonhara com aquele dia… sonhara com o dia em que a liberdade poria um fim nos anos de tortura e humilhação. Muitas lutas havia assistido pela conquista daquele dia. Foram surras e mais surras que presenciara, seus irmãos amarrados ao tronco, sentindo na carne a ponta afiada do chicote a castigá-los sem piedade. E para quê? Para terminarem seus dias como quando nasceram: prisioneiros de sua cor, de sua condição de escravos, de sua miséria. Voltou os olhos para João e, por fim, respondeu:

– João, para onde vão todos? Que farão daqui para a frente?

João, confuso, não sabia ao certo o que responder. Nunca pensara naquilo. Era jovem, saudável, nem era escravo, alcançado que fora pela Lei do Ventre Livre. Mesmo Tonha, com seus quase 97 anos de idade, alcançara a liberdade três anos antes, quando da promulgação da Lei dos Sexagenários. Permanecera na fazenda por opção, por não ter para onde ir, para poder ficar junto dos seus.

– Vó Tonha, não sei para onde todos irão. Só o que sei é que não quero ficar nem mais um minuto aqui, neste lugar horroroso, onde meus pais tanto sofreram, e você também. Venha comigo, por favor. Todos estão esperando por você. Não quer partir?

A velha encarou-o com ternura e compreensão, e retrucou, a voz embargada pelas lágrimas que, de mansinho, começavam a deslizar pelas suas faces.

– Meu filho, durante muito tempo não desejei outra coisa, senão partir daqui e nunca mais voltar. Mas agora… não sei.

– Como pode dizer isso? Você nunca foi feliz aqui.

– Esse é o mundo que me foi oferecido por Deus, e não me lembro mais de nenhum outro. O que será de mim lá fora? Não sofrerei mais? Sou sozinha, não tenho ninguém, nem filhos, nem irmãos, nada…

– Não diga isso. Você tem a todos nós. Somos a sua gente, o seu povo. Como pode pensar que está só?

– É muita bondade sua, João, mas não quero ser um entrave na vida de ninguém. Sei que estou velha, enxergo mal, já não posso mais trabalhar. Seria um fardo para qualquer um de vocês. E, além do mais, não sei o que nos aguarda do outro lado dessas serras.

– A liberdade, vó Tonha, a tão sonhada liberdade!


– Será, João? Será que arrebentar os grilhões de ferro será suficiente para nos tirar do cativeiro? Se deixamos de ser escravos, com certeza, permanecemos negros e pobres. E a gente branca não gosta de negros. Como sobreviveremos em um mundo dominado por brancos?

– Você está sendo muito dura. Pense naqueles que lutaram para que pudéssemos ser livres. Se há muitos brancos maus, com certeza há os bons também. Se não, continuaríamos ainda escravos.

– Talvez você tenha razão, não sei…

– Você está apenas com medo, é natural. No fundo, todos estamos. Mas precisamos lutar contra esse medo. Somos gente também. Não acha que merecemos nosso lugar no mundo como qualquer outra pessoa?

Tonha não respondeu. Cerrou os olhos e continuou a chorar baixinho. Ele estava certo. Era preciso lutar, e a luta ainda não terminara. A primeira etapa podia estar vencida, mas havia ainda a luta contra o preconceito. Sim, embora libertos, precisavam ser aceitos pelos brancos como iguais, como irmãos, filhos do mesmo Deus. Será que conseguiriam?

Ao abrir os olhos, João já não se encontrava mais ali. Será que tinha partido? Teria desistido de convencê-la e ido embora, com medo de que o abandonassem? Não. Tonha conhecia seu povo. Com certeza João, vendo que não conseguira convencê-la, saíra a buscar ajuda.

Olhando pela porta aberta, Tonha avistou ao longe a casa grande. Portas e janelas fechadas, parecia que ninguém vivia ali. Sequer a chaminé, sempre a expelir a gostosa fumaça do fogão, parecia ter vida. Era como se todos estivessem dormindo ou ausentes. Ninguém… ninguém aparecera para se despedir ou desejar-lhes sorte. Já era de se esperar. De todos os habitantes da casa, apenas Luciano e Clarissa se importavam. Apesar de serem bisnetos de Licurgo, não se pareciam em nada com ele. Ela até estranhou que os dois não tivessem aparecido para dizer adeus. De repente, porém, avistou-os cruzando o terreiro, acompanhados do negrinho João, que vinha gesticulando e apontando para a senzala. Pouco depois, os três apareceram na porta, e Clarissa, toda meiga, cumprimentou:

– E então, vó Tonha, como vai?

– Vou bem, minha menina, obrigada.

– Não vai embora? – ajuntou Luciano. – Todos os demais já estão prontos.

– Já sei, já sei. Só falta eu, não é?

– Parece que sim.

– Por que estão com pressa de se livrar de mim?

– Ora, vó Tonha, mas que besteira – censurou Clarissa. – Apenas não compreendemos por que não quer ir. Todos os escravos, quero dizer, ex-escravos, estão no maior alvoroço para partir.

– É verdade. Estão todos na porta da fazenda, prontinhos para ir, só aguardando você. O que está esperando?

– Não sei… – balbuciou – … tenho medo… Acho que… não quero ir…

– Estão vendo? – interrompeu João. – Eu não falei? Ela se recusa a ir, vai entender…

– Acalme-se, João – tranquilizou Luciano –, e deixe tudo por nossa conta. Pode ir andando. Logo ela estará com vocês.

João se afastou e Luciano encarou Tonha com ar de profunda admiração. Gentilmente segurando suas mãos, perguntou:

– Não quer nos contar o que está acontecendo? Pensamos que ficaria feliz com a abolição, no entanto, a encontramos aqui, toda lamuriosa, recusando-se a acompanhar os seus. O que houve?

Tonha, olhos banhados em lágrimas, apertou as mãos de Luciano e começou a chorar compulsivamente, dizendo entre soluços:

– Oh! sinhozinho, você não compreende. É muito jovem para compreender.

– Engano seu, Tonha. Compreendo muito bem. Sabe o quanto Clarissa e eu lutamos pela sua liberdade, mesmo contra a vontade de meu avô e de meu pai.

– É verdade, vó Tonha – concordou a moça. – Sempre estivemos do lado de vocês.

– Sim, eu sei, e fico muito agradecida por isso. Mas essa liberdade não é mais para mim. É para os mais moços, que ainda têm a esperança no coração. A liberdade que hoje espero é outra, e vocês não podem me dar.

– Como assim? Que liberdade é essa?

– É a liberdade da alma, que somente Deus é capaz de conceder.

– Não fale assim vó Tonha, fico triste.

– Não fique, menina. Você é também muito moça, e tem a vida toda para viver. Aproveite sua vida; eu já aproveitei a minha.

– Mas que besteira – censurou Luciano. – Você ainda pode aproveitar esse restinho de vida e viver os seus últimos dias em liberdade. Não seria bom?

– Sim, seria. Mas não longe daqui. Não tenho mais forças para isso.

– Ora essa…

– Por favor, me deixem ficar.

– Eu gostaria muito, mas não posso. Papai não quer mais nenhum negro aqui. Disse que, se querem ir, que se vão, mas que ninguém poderá ficar hospedado em suas terras. Foi o que ele disse.

– Oh! meu Deus, meu Deus! Rogo que não me abandonem. Sinto que, se partir, não viverei o suficiente para concluir a jornada. E gostaria de terminar os meus dias aqui, em segurança, onde sempre vivi.

– Ainda que longe dos seus?

– Ainda que longe dos meus. Eles têm a vida deles. Não tenho o direito de pedir para ficarem.

– Não sei, não. Papai ficaria furioso.

– Ora, Luciano, o que é isso? Agora deu para ter medo de papai?

– Por favor, sinhozinho, peça a ele – suplicou Tonha. – Não vou incomodar ninguém. Fico quietinha aqui no meu canto. Por favor…

Luciano estava confuso. Embora quisesse deixá-la ficar, temia que o pai não aprovasse. Clarissa, porém, resolveu dar por encerrada a discussão.

– Muito bem, Luciano. Vó Tonha pode ficar. Deixe papai comigo, saberei convencê-lo.

Ele olhou em dúvida para a irmã, e acabou por aquiescer:

– Está bem, fale com ele, então.

– Farei isso agora.

Clarissa saiu e voltou após quase uma hora, com a permissão para que Tonha pudesse ficar. O pai, finalmente, concordara, depois que Clarissa lembrou-lhe que a velha escrava havia sido ama-seca de todas as crianças dali, inclusive dele mesmo. Assim, ainda que meio a contragosto, o velho Fortunato acabou por concordar, não por gratidão à ex-escrava, mas para agradar à menina Clarissa, que era a preferida no coração do pai.

– Muito bem – foi logo dizendo, assim que voltou à senzala –, tudo resolvido. Papai concordou.

– Oh! bendita seja, sinhazinha! Muito obrigada, Deus há de lhe pagar em dobro.

– Mas o que é isso, vó Tonha? Não precisa agradecer, não.

– Como você conseguiu? – quis saber Luciano, cheio de curiosidade. – E tão rápido!

– Ora, irmãozinho, tenho meus métodos. Conheço papai, e sei muito bem que armas usar com ele.

– Bem, vá lá. O importante é que você conseguiu.

– Sim, e agora precisamos avisar aos outros que vó Tonha não irá. Papai disse que pode continuar no quarto das escravas de dentro.

Tonha chorava de gratidão. Os meninos eram-lhe muito dedicados e amorosos, e isso era um conforto para o seu coração cansado.

Os amigos de Tonha receberam a notícia com uma certa tristeza, mas acabaram por aceitar sua decisão. Afinal, ela tinha razão. Já estava velha, e a viagem poderia ser por demais penosa para ela. Isso sem contar que, efetivamente, seria um estorvo para os demais, que teriam que se preocupar com sua saúde e bem estar. Ficaram gratos à sinhazinha Clarissa e ao sinhozinho Luciano, que tão carinhosamente a acolheram e, depois das despedidas, partiram, sem levar na alma a mais leve sombra de pesar ou saudade da fazenda São Jerônimo.

Depois de confortavelmente instalada no quartinho que lhe fora reservado, Tonha passou a ser diariamente paparicada por Clarissa e Luciano, que a tinham na mais alta estima. Certo dia, quando conversavam sobre os tempos idos, Luciano indagou:

– Vó Tonha, por que não nos conta sua história?

– Ora, vocês já conhecem a minha história. Pois então não viram?

– Não, não. Você nunca nos contou como chegou aqui. Por que não nos conta tudo?

– E por que essa curiosidade do sinhozinho agora?

– Não sei. De repente lembrei que, no próximo mês, você fará 97 anos, e creio que deva ter muita coisa para contar.

– Hum, não sei, não.

– Ora vamos, vó Tonha – entusiasmou-se Clarissa. – Penso que seria emocionante.

– Talvez. Ou talvez vocês fiquem aborrecidos.

– Por que não experimenta? Talvez nos interessemos muito.

– Bom, se é assim que querem, não me custa nada. Ao contrário, até me fará bem recordar…

– Vamos, conte logo.

Tonha pareceu vagar o olhar, como que a buscar alguma coisa perdida no horizonte. Olhou para o céu e para o sol, que estava a pino, e lembrou-se de quando para ali fora, menina ainda, com seus poucos nove anos, trazida da África em um navio negreiro, juntamente com dezenas de seu povo. Vagarosamente, voltou os olhos úmidos para Luciano e Clarissa e começou a contar toda a sua história, desde o dia em que fora vendida aos brancos portugueses, há muitos, muitos anos…

Uma História de Ontem



Os atos de desequilíbrio são gerados pela ignorância, e as consequências desastrosas derivam da culpa que essa ignorância traz.

Depois de dez anos de sucesso, apresentamos a edição revisada do primeiro romance de Mônica de Castro. Embora os fatos narrados tenham ocorrido no início do século vinte, esta é uma história atual e envolvente, em que as paixões se chocam em meio aos falsos padrões de comportamento e as aparências ditam as normas.

Pressionados e despreparados, os envolvidos reagem pensando que, mantendo as aparências, estarão livres da responsabilidade de suas atitudes.

Essa ilusão tem um preço muito alto, gerando dor e sofrimento, em um círculo vicioso que pode durar séculos. Entretanto, a vida, em sua magia espiritual, usa os recursos do tempo e da reencarnação para libertá-los, tornando-os conscientes dos verdadeiros e eternos valores do espírito, sem os quais ninguém conseguirá conquistar a felicidade.

Conheça a fascinante história de Rosali e se emocione. Esta é uma história de ontem…


Prólogo

Fazia frio, muito frio. Contra a vontade do vento, dobrou a esquina, tentando ocultar as faces no manto que, teimosamente, insistia em ceder passagem à neve que enregelava seus músculos. Silenciosamente adentrou o castelo, penetrando por uma passagem lateral, quase invisível por detrás dos arbustos de hera. Com passos rápidos e assustados, seguiu pelos corredores escuros, buscando trilhar os recantos mais isolados e secretos do castelo, evitando o encontro com pessoas indesejáveis.

Ante uma enorme porta de ferro, estacou e apurou os ouvidos. Silêncio. Vagarosamente, empurrou a pesada porta e passou para o aposento, do outro lado da parede, fechando-a em seguida para esconder a passagem secreta por detrás da imensa estante de livros. Caminhando cautelosamente, dirigiu-se a uma enorme mesa de cedro, parando em frente a um homem, jovem ainda, que, absorto na leitura, a princípio não percebeu sua entrada. Subitamente, movido mais pela intuição do que pela audição, ele largou a leitura e levantou os olhos negros para ela que, lívida, fitava-o cheia de admiração.

– O que está fazendo aqui? – perguntou. – Já não lhe disse que não viesse sem que eu a chamasse? Alguém a viu entrar?

Levantou-se apressado e foi em direção à porta, a fim de averiguar se alguém havia notado a presença dela. Mas, dado o adiantado da hora, todos já estavam dormindo, à exceção dele mesmo, entretido que estava na leitura.

– Não, meu senhor. Ninguém me viu entrar. A neve cai impiedosa, e ninguém se atreve a sair com um tempo destes.

– O que veio, então, fazer aqui?

– Pedir-lhe auxílio – disse enquanto afastava o manto, descobrindo o ventre, já bem avolumado. – Não posso mais continuar assim. Não tenho recursos, sequer roupas para vestir o pequeno. Que fazer? Você me prometeu ajuda, mas até agora nada fez por mim, por nós, por nosso filho.

O homem, bastante irritado, pôs-se a esbravejar, fazendo com que a moça se encolhesse e desatasse num choro carregado de ressentimento.

– Não pode tratar-me assim – queixou-se ela. – Nada fiz para merecer tamanho desprezo, senão amá-lo. Por você abandonei minha família, meu lar. Meu pai virou-me as costas, envergonhado por ver a filha desonrada, sem marido. Acusa-me de mundana, não quer me ver.

Receoso, o homem indagou, tentando aparentar um carinho que não possuía.

– Você disse a ele quem é o pai da criança?

– Não. Fiz como você me pediu e nada revelei a ninguém, embora ele desconfie de você… Francamente, não sei por quanto tempo poderei guardar este segredo – olhou para ele com uma certa malícia, deixando entrever que não estava disposta a suportar, sozinha, tão pesado fardo. – Até agora nada disse a ninguém. Contudo, se você não me auxilia, como farei para viver? Já disse que meu pai me voltou as costas, expulsou-me de casa.

O homem, certo de que aquela mulher, cedo ou tarde, acabaria por levar a todos o conhecimento da verdade, dissimulou a voz e retrucou:

– Quando você me conheceu, já sabia que eu era casado e que, dada a minha posição, não poderia assumir abertamente esse romance.

– Mas você disse que me amava e que cuidaria de mim…

– E não venho fazendo isso? Por acaso não providenciei um teto para você, não mando levar-lhe alimento a cada semana?

– Deu-me apenas uma tosca choupana perdida no meio da floresta. As roupas já não me servem, e a comida mais parece restos da sua mesa. E você não vem mais ver, não se importa com bebê, que sequer possui enxoval. Afinal, você é o pai, tem responsabilidades. Se não quiser assumi-las por bem, serei obrigada a tomar minhas próprias providências. Estou certa de que o bispo…

O homem, visivelmente enfurecido, desferiu-lhe sonoro tapa no rosto e gritou, enquanto a vermelhidão se alastrava pela pálida face da menina:

– Meu filho? Como ousa desafiar-me, a mim, um conde?

A moça, chorando copiosamente, retrucou, entre humilde e receosa:

– Perdoe-me. É o desespero que me faz agir assim. Jamais me atreveria a levantar qualquer suspeita sobre seu nobre caráter. Mas, o que fazer? Que fazer com a criança, uma criança que sequer desejei? Não tenho recursos, não tenho nada nem ninguém, apenas você. Por favor, não me abandone!

A mulher estava descontrolada e começou a elevar a voz, entrecortada por soluços sentidos e desesperados.

– Acalme-se, pelo amor de Deus! Encontrarei uma solução – durante alguns segundos quedou-se silente, até que, com um sorriso indecifrável nos lábios, finalizou: – Não se preocupe. Dentro de dois dias, à meia-noite, volte aqui e tudo se resolverá.

– Como? O que pretende fazer?

– Deixe tudo por minha conta. As coisas se arranjarão da melhor forma possível. Ou será que não confia em mim?

– Confio cegamente. Apenas tenho receio…

– Pois não receie. Eu estou aqui e vou protegê-la. Agora vá e deixe-me só. Preciso organizar meus pensamentos e tomar algumas providências.

Decorridos os dois dias, a mulher retornou à hora aprazada, sozinha e cheia de esperanças.

– Venha – ordenou o conde sem delongas.

Saíram ocultos do castelo e tomaram um coche desprovido de qualquer ornamento, que os aguardava escondido entre as árvores. Seguiram em silêncio, encobertos pelas sombras, e pararam cerca de uma hora depois às portas de imensa e sóbria abadia. Ainda sem dizer palavra, penetraram por uma passagem secreta, acompanhados de uma freira, e foram descendo até os subterrâneos do convento. A freira os deixou ao chegarem a uma câmara pouco iluminada, com paredes de pedra, que mais parecia uma masmorra, onde se via, ao centro, uma espécie de maca coberta por um lençol encardido e grosseiro. No interior, a abadessa já os esperava, acompanhada de um homem de aspecto grave e pouco amistoso, que não escondia o nervosismo.

– Meu caro conde – disse o homem –, já não era sem tempo. Vamos depressa com isso, já estou impaciente.

– Calma – respondeu ele, segurando-o pelo braço. – Sei ser generoso com os amigos, principalmente com aqueles que me servem fielmente.

A moça, sem entender o que se passava, olhou ao seu redor e perguntou:

– O que é isso, meu senhor? Quem são essas pessoas? Que viemos fazer aqui?

– Sossegue, minha querida – falou carinhosamente a abadessa. – Está entre amigos. Siga-me.

A abadessa conduziu a moça até a cama, fazendo-a deitar-se de costas. De forma suave e apaziguadora, acariciou seus cabelos, transmitindo-lhe palavras de conforto e segurança.

– Não se aflija. Tudo vai acabar bem. Verá que, ao terminarmos, poderá continuar seguindo com sua vida como se nada tivesse acontecido. Esquecerá o ocorrido e poderá até mesmo, casar. Quem sabe? Ou, se preferir, poderá ficar aqui e dedicar sua vida a Deus.

– Mas… – gaguejou a moça – não compreendo. Terminar o quê? Esquecer o quê? Por favor, meu senhor, explique-me o que está acontecendo.

– Silêncio! – ordenou o conde. – Basta de choramingos e perguntas. Não percebe o que está para acontecer? Este homem é um cirurgião, vai examiná-la e libertar-nos, a você e a mim, desse fardo indesejável. Essa criança não pode nascer. Será a minha ruína. Não se preocupe. O médico é experiente e, depois, você será regiamente recompensada.

A moça silenciou. Talvez ele tivesse razão. Para que continuar com aquilo, deixar vir ao mundo uma criança que não desejava, enterrar sua vida e a de seu senhor no lodaçal da vergonha e do escândalo? Além do mais, ele prometera recompensá-la. Com o dinheiro poderia ir-se embora dali, esquecer aquilo tudo e recomeçar em algum lugar.

O médico iniciou a trabalhar nela. Afastou-lhe as pernas sem qualquer constrangimento e introduziu os dedos em sua vagina. Após alguns segundos, em que a moça não conseguia esconder sua vergonha, retirou a mão e chamou o conde a um canto:

– Creio que não é aconselhável tentarmos retirar o feto. A gravidez já se encontra muito adiantada, e há riscos para a mãe.

– Não importa – replicou o conde. – Livre-me dessa criança de qualquer jeito. Se a mãe não resistir, bem… Será uma pena, mas nada poderemos fazer. Além disso, ela é ainda muito jovem, e há de possuir forças para suportar a dor e as consequências.

A solução foi prosseguir com a cirurgia que, a essa altura, seria mesmo um parto, seguido da morte do bebê. Manipulando instrumentos cirúrgicos precários, o médico tentou puxar, para fora do útero da mãe, o feto de quase seis meses de gestação. Foi um fracasso. Inconscientemente apegado ao instinto de sobrevivência, o bebê fugia aos aparelhos, até que os instrumentos conseguiram fixar-se em seu corpinho e o cirurgião o puxou, retirando-lhe o tronco sem um dos membros superiores. A criança veio ao mundo ainda com vida e estertorou por alguns poucos segundos, morrendo logo em seguida e deixando no útero da mãe o bracinho decepado. Tamanha violência desencadeou séria hemorragia, e o médico, atarantado, não sabia o que fazer para extrair o braço da criança do ventre materno.

– Pelo amor de Deus! – implorou ela, sentindo dores terríveis. – Salvem-me! Não quero morrer, tenho medo! Salvem-me! Salvem-me!

– Jesus… – evocou a abadessa, coberta de pavor.

Banhada em sangue, a moça urrava feito animal ferido, prestes a morrer, e os presentes, assustados, entraram em pânico, vendo próximo o fim da paciente. Esta, transtornada pela dor, pela revolta e pelo ódio, passou a acusar o conde, a abadessa e o cirurgião de assassinos, julgando haver, entre eles, um complô para matá-la e à criança. Os três, apavorados, permaneceram imóveis, assistindo paralisados a vida da moça se esvaindo aos borbotões, sem que nada pudessem fazer. E ela, ainda em um último alento, juntou forças e bradou, fazendo estremecer os presentes ante a carga de ódio contida em suas palavras:

– Malditos sejam, todos vocês que tramaram, covardemente, o meu fim e o de meu filho. Eu juro que não encontrareis sossego enquanto viverem, pois minha alma, que julgo eterna, não descansará enquanto não concluir a terrível vingança que tramarei contra vocês. Que os demônios do inferno os amaldiçoem a todos! E que o meu ódio, bem como o do meu filho, recaia sobre as suas consciências, trazendo para suas vidas somente doenças, misérias e infelicidades, por séculos e séculos à frente…

E assim, levando em seu coração o ódio desmesurado e o desejo de vingança, cerrou os olhos para sempre, deixando os três figurantes entre atônitos e confusos, cada qual remoendo em suas consciências os fatos ocorridos naquela noite.

Para a abadessa, acostumada a ceder os subterrâneos do convento para aqueles eventos, as palavras da moribunda soaram como uma maldição. Já havia presenciado muitos abortos e condoeu-se do desespero daquela moça, quase menina, arrependendo-se de haver compactuado, tantas vezes, com aquela mortandade infantil, em troca dos favores que os nobres, tão gentilmente, lhe concediam.

Para o cirurgião, que julgava apenas exercer o seu ofício, aquelas palavras o fizeram refletir sobre o valor da vida, e uma pontinha de arrependimento assomou em seu íntimo. A ambição desenfreada, contudo, suplantou o alerta da consciência, e ele eximiu-se de qualquer responsabilidade sob o argumento de que fora apenas um instrumento a serviço do conde, a quem alertara sobre os riscos daquela operação. Ele sim, fora o verdadeiro e único responsável pelo falecimento da moça.

Para o conde, as palavras daquela que um dia tomara como amante o assustaram num primeiro momento, levando-o a temer ser assombrado por ela ou perseguido por algum tipo de maldição. No entanto, depois de algum tempo, a vida retomou a normalidade, e ele não mais se preocupou com a moça, sentindo-se até mesmo aliviado por livrar-se daquele estorvo.

A jovem, por sua vez, perdida na treva de mundos inferiores, consorciou-se a espíritos ignorantes e presos à ilusão do mal, alimentando em seu coração o ódio e o desejo de vingança, não só pelo conde, o médico e a abadessa, mas também pelo pequeno abortado. Até que a vida trouxe novas oportunidades, e outra jornada se iniciou…

Prólogo

Fazia frio, muito frio. Contra a vontade do vento, dobrou a esquina, tentando ocultar as faces no manto que, teimosamente, insistia em ceder passagem à neve que enregelava seus músculos. Silenciosamente adentrou o castelo, penetrando por uma passagem lateral, quase que invisível por detrás dos arbustos de hera. Com passos rápidos e assustados, seguiu pelos corredores escuros, buscando trilhar os recantos mais isolados e secretos do castelo, evitando o encontro com pessoas indesejáveis.

De repente, estacou ante uma enorme porta de pedra, apurou os ouvidos e escutou. Silêncio. Vagarosamente, empurrou a pesada porta e penetrou no aposento, do outro lado da parede, fechando-a em seguida, escondendo a passagem secreta por detrás de pesada estante de livros. Caminhando cautelosamente, dirigiu-se para uma enorme mesa de cedro, parando em frente a um homem, jovem ainda que, absorto na leitura, a princípio não percebeu sua entrada. Subitamente, como que movido mais por intuição do que pela audição, largou a leitura e levantou os olhos negros para ela que, lívida, o fitava cheia de admiração.

– O que estás fazendo aqui? – perguntou. – Já não te disse que não viesses aqui sem que eu te chamasse? Alguém te viu entrar?

Dito isso, levantou-se apressado, indo em direção à porta do gabinete, para averiguar se alguém havia notado a sua presença. Contudo, dado o adiantado da hora, todos se encontravam já dormindo, à exceção dele mesmo, entretido que estava na leitura.

– Não, meu senhor. Ninguém me viu entrar. A neve cai impiedosa, e ninguém se atreve a sair com um tempo destes.

– Que vieste, então, fazer aqui?

– Pedir-te auxílio – disse enquanto afastava o manto, descobrindo o ventre, já bem avolumado. – Não posso mais continuar assim. Não tenho recursos, sequer roupas para vestir o pequeno. Que fazer? Prometeste-me ajuda, mas até agora nada fizeste por mim, por nós, por nosso filho.

O homem, bastante irritado, pôs-se a esbravejar, fazendo com que a moça se encolhesse e desatasse num choro carregado de ressentimento.

– Não podes tratar-me assim – queixou-se ela. – Nada fiz para merecer tamanho desprezo, senão amar-te. Por ti abandonei minha família, meu lar. Meu pai virou-me as costas, envergonhado por ver a filha desonrada, sem marido. Acusa-me de mundana, não me quer ver.

Receoso, o homem indagou, tentando aparentar um carinho que não possuía.

– Disseste a ele quem é o pai da criança?

– Não. Fiz como me pediste e nada revelei a ninguém, embora ele desconfie de ti… Francamente, não sei por quanto tempo poderei guardar este segredo – olhou para ele com uma certa malícia, deixando entrever que não estava disposta a suportar, sozinha, tão pesado fardo. – Até agora nada disse a ninguém. Contudo, se não me auxilias, como farei para viver? Já disse que meu pai me voltou as costas, expulsou-me de casa.

O homem, certo de que aquela mulher, cedo ou tarde, acabaria por levar a todos o conhecimento da verdade, dissimulou a voz e retrucou:

– Quando me conheceste, já sabias que eu era casado e que, dada a minha posição, não poderia assumir abertamente meu romance contigo.

– Mas disseste que me amavas e que cuidarias de mim.

– E não venho fazendo isso? Por acaso não providenciei um teto para ti, não te mando levar alimento a cada semana?

– Sim, mas é apenas uma tosca choupana perdida no meio da floresta, onde as paredes finas não impedem a entrada do frio. Não possui lareira, e as acomodações não oferecem um mínimo de conforto. Ademais, as roupas já não me servem, meu corpo se transforma, estou engordando cada vez mais, e não há agasalho que me proteja do vento. A alimentação que me envias é escassa, mais se assemelhando a restos de tua mesa do que a provisões adquiridas para mim. Além disso, não me vens mais ver, não te importas com minha saúde nem com a do bebê que espero, que sequer possui enxoval. Afinal, és o pai, tens responsabilidades para com ele. Se não quiseres assumi-las por bem, serei obrigada a tomar minhas próprias providências. Estou certa de que o bispo…

O homem, visivelmente enfurecido, desferiu-lhe sonoro tapa no rosto e gritou, enquanto a vermelhidão se alastrava pela pálida face da menina:

– Meu filho? Como ousas desafiar assim um conde, cuja reputação ilibada não possui mácula alguma em seu passado?

A moça, agora chorando copiosamente, dizia humilde e receosa:

– Perdoa-me, meu senhor. É o desespero que me faz agir assim. Jamais me atreveria a levantar qualquer suspeita sobre teu nobre caráter. Mas, o que fazer? Que fazer com a criança, uma criança que sequer desejei? Não tenho recursos, não tenho nada nem ninguém, apenas a ti. Por favor, não me abandones, não me abandones!

A mulher, já descontrolada, começava a elevar a voz, entrecortada por soluços sentidos e desesperados.

– Acalma-te, pelo amor de Deus! – suplicou ele. – Encontrarei uma solução. – Durante alguns segundos quedou-se silente, pensando na maneira mais fácil de resolver aquela situação sem provocar escândalos. – Escuta com atenção. Dentro de dois dias, à meia-noite, retorna sozinha e tudo se resolverá.

– Mas como? O que farás?

– Não te preocupes. Tudo se arranjará da melhor forma possível. Ou não confias em mim e no meu amor?

– Confio, meu senhor, cegamente. Apenas tenho receio…

– Pois não receies. Eu estou aqui e vou proteger-te. Agora vai e deixa-me só. Preciso organizar meus pensamentos e tomar algumas providências.

Decorridos dois dias, a mulher retornou à hora aprazada, sozinha e cheia de esperanças. Mais uma vez seguiu pelos corredores escuros e ocultos do palácio, indo dar na sala ocupada pelo conde, que já a aguardava ansiosamente.

– Vem – ordenou ele sem delongas.

Fizeram o caminho de volta, saíram do castelo e tomaram um coche desprovido de qualquer ornamento, que os aguardava escondido entre as árvores. Em silêncio, seguiram encobertos pelas sombras, parando cerca de uma hora depois às portas de imensa e sóbria abadia. Ainda sem dizer palavra, penetraram por uma passagem secreta, acompanhados de uma freira, indo dar nos subterrâneos do convento. A freira os deixou ao chegarem a uma câmara pouco iluminada, com paredes de pedra, que mais parecia uma masmorra, onde se via, ao centro, uma espécie de maca coberta por um lençol encardido e grosseiro. No interior, a abadessa já os esperava, acompanhada de um homem de aspecto grave e pouco amistoso, que não escondia o nervosismo.

– Meu caro conde – segredou o homem –, já não era sem tempo. Vamos depressa com isso, já estou impaciente.

– Acalma-te – respondeu ele, segurando-o pelo braço. – Sei ser generoso com os amigos, principalmente com aqueles que me servem fielmente.

A moça, sem entender o que se passava, olhou ao redor e perguntou:

– O que é isso, meu senhor? Quem são essas pessoas? Que viemos fazer aqui?

– Sossega, minha querida – falou carinhosamente a abadessa. – Estás entre amigos. Segue-me.

Assim dizendo, conduziu a moça até a cama, fazendo-a deitar-se de costas. De forma suave e apaziguadora, a abadessa acariciava seus cabelos, transmitindo-lhe palavras de conforto e segurança.

– Não te aflijas. Tudo vai acabar bem. Verás que, ao terminarmos, poderás continuar seguindo com tua vida como se nada tivesse acontecido. Esquecerás o ocorrido e poderás até mesmo, quem sabe, casar? Ou, se preferires, poderás ficar aqui e dedicar tua vida a Deus.

– Mas… – gaguejava a moça – … não compreendo. Terminar o quê? Esquecer o quê? Por favor, meu senhor, explica-me o que está acontecendo.

– Silêncio! – ordenou ele. – Basta de choramingos e perguntas. Não percebes o que está para acontecer? Este homem é um cirurgião, vai examinar-te e libertar-te, a ti e a mim, desse fardo indesejável. Essa criança não pode nascer. Será a minha ruína. Não te preocupes. O médico é experiente e, depois, serás regiamente recompensada.

A moça silenciou. Talvez ele tivesse razão. Para que continuar com aquilo, deixar vir ao mundo uma criança que não desejava, enterrar sua vida e a de seu senhor no lodaçal da vergonha e do escândalo? Além do mais, ele prometera recompensá-la. Com o dinheiro poderia ir-se embora dali, esquecer aquilo tudo e recomeçar.

O médico iniciou a trabalhar nela. Afastou suas pernas sem qualquer constrangimento e introduziu os dedos em sua vagina. Após alguns segundos, em que a moça não conseguia esconder sua vergonha, retirou a mão e chamou o conde a um canto:

– Creio que não é aconselhável tentarmos retirar o feto. A gravidez já se encontra muito adiantada, e há riscos para a mãe.

– Não importa – replicou o conde. – Livra-me dessa criança de qualquer jeito. Se a mãe não resistir, bem… Será uma pena, mas nada poderemos fazer. Além disso, ela é ainda muito jovem e há de possuir forças para suportar a dor e as consequências.

O cirurgião não viu outra solução, senão prosseguir na operação que, a essa altura, já seria mesmo um parto, seguido do assassinato de uma criaturinha inocente. Manipulando instrumentos cirúrgicos precários, tentou puxar o feto para fora do útero da mãe, já todo formado, nos seus quase seis meses de gestação, e dilacerou o seu corpinho, retirando-lhe o tronco sem um dos membros superiores. A criança veio ao mundo ainda com vida mas, estertorando por alguns poucos segundos, logo morreu, deixando no útero da mulher o bracinho decepado. Tamanha violência ocasionou séria hemorragia na moça, e o médico não sabia como retirar o braço da criança do ventre materno, causando-lhe dores horríveis.

– Pelo amor de Deus! – implorava. – Salvai-me! Não quero morrer, tenho medo! Salvai-me! Salvai-me!

– Jesus… – evocou a abadessa coberta de pavor.

A moça, banhada em sangue, urrava feito animal ferido, prestes a morrer, e os presentes, assustados, entraram em pânico, vendo próximo o fim da paciente. Esta, já agora transtornada pela dor, pela revolta e pelo ódio, passou a acusar o conde, a abadessa e o cirurgião de assassinos, julgando haver, entre eles, um complô para matá-la e à criança. Os três, apavorados, permaneceram imóveis, assistindo paralisados a vida da moça se esvaindo aos borbotões, sem que nada pudessem fazer. Esta, ainda em um último alento, juntou forças e bradou, fazendo estremecer os presentes ante a carga de ódio contida em suas palavras:

– Malditos sejais, vós que tramastes, covardemente, o meu fim e o de meu filho. Eu juro que não encontrareis sossego enquanto viverdes, pois que minha alma, que julgo eterna, não descansará enquanto não concluir a terrível vingança que tramarei contra vós. Que os demônios do inferno vos amaldiçoem a todos! E que o meu ódio, bem como o do meu filho, recaia sobre as vossas consciências, trazendo para vossas vidas somente doenças, misérias e infelicidades, por séculos e séculos à frente…

E assim, levando em seu coração o ódio desmesurado e o desejo de vingança, cerrou os olhos para sempre, deixando os três figurantes entre atônitos e confusos, cada qual remoendo em seus pensamentos os fatos ocorridos naquela noite.

Para a abadessa, acostumada que estava a ceder os subterrâneos do convento para aqueles eventos, as palavras da moribunda soaram como uma maldição, e o seu coração, que muitos abortos já presenciara, condoeu-se do desespero daquela moça, quase menina, e se arrependeu de haver compactuado, tantas vezes, com aquela mortandade infantil em troca dos favores que os nobres, tão gentilmente, lhe concediam.

Para o cirurgião, que apenas exercia o seu ofício, aquelas palavras o fizeram refletir sobre o valor da vida, e uma pontinha de arrependimento assomou em seu íntimo. Mas a ambição desenfreada suplantou o alerta da consciência, fazendo com que se julgasse apenas um instrumento, o que o eximia de qualquer responsabilidade pelo ocorrido. Não era culpa sua se, lamentavelmente, nem sempre as coisas saíam conforme o desejado, já que cumprira com o seu dever advertindo o conde dos riscos que correria a jovem com aquela operação. Ele sim, fora o verdadeiro e único responsável pelo falecimento da moça.

Para o conde, contudo, as palavras daquela que um dia tomara como amante o assustaram num primeiro momento, temendo que passasse a ser vítima, dali para a frente, de algum tipo de assombração. No entanto, depois de algum tempo, as coisas retornaram à normalidade, e ele não mais se preocupou com ela, sentindo-se até mesmo feliz por livrar-se daquele estorvo.

Quanto à jovem, perdida que ficara nas trevas de mundos inferiores, consorciou-se a espíritos odientos e perversos, alimentando em seu coração o ódio, não só pelo conde, o médico e a abadessa, que se haviam juntado para roubar-lhe a juventude e a vida, mas também pelo pequeno abortado, que sequer chegara a conhecer, atribuindo-lhe a responsabilidade por havê-la atirado na injusta e imerecida situação que fora a causa de toda a sua desgraça…

Mônica d Castro
Facebook
    

Nenhum comentário:

Postar um comentário