segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Os Botões da Esperança




Denise Galvão

No fundo da Rua das Amendoeiras, ficava uma lojinha tão pequena que muita gente passava por ela sem notar. 

Na vitrine, um manequim sem cabeça usava sempre o mesmo vestido de linho, já um pouco gasto. E atrás do balcão, entre carretéis e linhas de todas as cores, sentava-se Dona Celina, costureira de ofício e de coração.

Celina tinha mãos firmes e olhos cansados. Costurava para sustentar a si e ao marido doente, e, mesmo quando o dinheiro mal dava pra pagar o gás, havia sempre um sorriso leve em seus lábios — desses que nascem de quem conhece a delicadeza das coisas simples.

Todas as manhãs, um grupo de crianças parava diante da vitrine para ver as bonecas que ela costurava com sobras de tecido. Eram bonecas desiguais — uma com o braço torto, outra com um olho maior que o outro —, mas cada uma tinha um nome e uma história que Celina contava de improviso.

— Essa aqui é a Ritinha, que sonha em ser bailarina.

— E essa, Dona Celina? — perguntava o menorzinho, um garoto de bochechas sujas.

— Essa é a Estrela. Brilha mesmo no escuro.

Ela ria, e os meninos também.

Uma tarde, Celina estava encerrando o expediente quando uma mulher elegante entrou na loja.

 Vestia um casaco cinza e tinha o olhar distraído, como quem vive correndo atrás de alguma coisa que nunca alcança.

— Preciso que ajuste este vestido — disse, largando um cabide no balcão. — Amanhã tenho um evento importante.

Celina assentiu. Abriu o vestido, alisou o tecido, mediu com cuidado. Era de seda pura — caro, liso, distante.

Enquanto trabalhava, ouviu do outro lado da parede a tosse do marido. Fechou os olhos por um instante. 

E então, num impulso que nem ela mesma soube explicar, separou um punhado de retalhos coloridos e começou a costurar depois que a cliente se foi. Não para o vestido de festa, mas para fazer algo diferente: bolsinhas. Pequenas, simples, feitas de sobras. Colocou botões brilhantes, fitas de cetim, costurou tudo com capricho.

No dia seguinte, levou as bolsinhas para a única escola que tinha no bairro e as entregou à professora, dizendo:

— Dê para as crianças. Elas podem guardar lápis, pedrinhas, sonhos... o que quiserem.

A professora, emocionada, aceitou.

Dias depois, Celina esqueceu-se completamente do assunto. Continuou com seus ajustes, suas bonecas e o marido, que piorava. Até que, meses mais tarde, a campainha tocou.

Na porta, estava a mesma mulher do vestido de seda. Mas desta vez, o rosto era outro — mais suave, mais humano.

— A senhora é Dona Celina, não é?

— Sou, sim. — Ela limpou as mãos no avental, confusa.

A mulher segurava uma bolsinha feita de retalhos.

— A minha filha recebeu isso na escola. Disse que era “a bolsa da coragem” porque cada botão é um desejo. Desde então, ela não dorme sem ela.

Celina arregalou os olhos.

— Foi a senhora quem costurou, não foi? — continuou a mulher, com lágrimas nos olhos. — Eu… eu queria agradecer. E também… pedir algo.

Tirou do casaco um envelope.

— Sou diretora de uma fundação infantil. Precisamos de alguém para ensinar costura às meninas e meninos do abrigo. Queremos que aprendam que cada pedaço, mesmo pequeno, pode virar algo bonito.

Celina ficou sem palavras. O marido, apoiado no batente, sorria fraco.

Ela pegou a bolsinha das mãos da mulher, passou o dedo nos botões e disse baixinho:

— Engraçado… nunca imaginei que costurar esperança fosse dar lucro, e sorriu.

A mulher riu entre lágrimas.

— Então, aceita?

Celina respirou fundo.

— Aceito. Mas só se puder levar meus retalhos. São eles que fazem a mágica acontecer.

E assim foi.

A loja da Rua das Amendoeiras fechou, mas dali nasceram dezenas de costureiras e alfaiates que aprenderam o ofício com amor. Celina ensinava o ponto reto, o ponto invisível e, principalmente, o ponto de dentro — aquele que une pessoas.

Dizem que até hoje, quando alguém segura uma das bolsinhas feitas por ela, ainda sente um calor discreto nas mãos.

O calor de quem costurou o mundo sem nunca perceber que o estava remendando.

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